AS SUPERSTIÇÕES


Existem certos detalhes no modo pelo qual a gaúcho toma mate, que nos chamam a atenção pela sua originalidade, tentando-nos logo a buscar-lhes uma explicação. E eis que vamos encontrar, como origem de muitos destes fatos, velhas superstições, desaparecidas com o transcorrer dos tempos, mas que vieram, por força do hábito, a constituir um entranhado costume entre os mateadores.

É o caso, por exemplo, do cevador tomar sempre o primero mate. Isto nos parece uma indelicadeza, mormente quando na roda do chimarrão se encontram visitantes ou pessoas que merecem uma especial deferência.

Em parte, esse hábito serve para que o cevador, tendo preparado a bebida, verifique se ela está em condições de ser apresentada aos companheiros. Mas façamos uma pergunta, com base num exemplo prático: se o cevador prepara o mate na cozinha, e ali o experimenta devidamente, por que motivo, ao chegar diante da visita, na sala, ainda assim obedece ao ritual de servir-se por primeiro? - A resposta nos é dada pela História, nos primeiros tempos do uso da “caá”.

Tomamos conhecimento, na primeira parte desta monografia, das contínuas perseguições de que foi vítima a erva-mate durante o século XVI. Tudo foi feito no sentido de depreciar a bebida nativa que tomava conta dos lares coloniais, e era voz corrente que o mate era obra do diabo. As superstições eram muitas, e o medo se espalhava entre os espanhóis, principalmente depois que tomou vulto a notícia de que os índios agregavam substâncias venenosas à erva-mate. Mas a situação foi sabiamente contornada: quem oferecia o mate era sempre o primeiro a tomá-lo, mostrando, assim, que não havia colocado veneno algum na infusão. Este uso persistiu pelo tempo afora, e ainda hoje vamos encontrar o cevador tomando a primeira cuia, para depois oferecê-la aos visitantes.

Outro fato curioso verificamos durante a preparação do chimarrão. O cevador, após deixar a erva “inchar”, enche um mate e chupa-o, sem entretanto tomá-lo, mas cuspindo-o fora. Por que isto acontece?

Dirão uns que o gaúcho procura atirar fora o abundante pó que sobe à bomba aos primeiros sorvos. Mas isto só acontece quando o mate é preparado em cuia pequena, e com bastante facilidade podemos bater a erva, fazendo o pó baixar ao fundo do porongo; por que, então, este costume persiste na preparação de mate em cuias grandes, para uma roda de muitos mateadores, quando o pó parece desaparecer em vista da maior quantidade de água utilizada?

Dirão outros que a causa reside no fato da água estar fria. Mas quando o mate é preparado com água morna, e depois despeja-se mais uma quantidade de água quente, a infusão adquire uma agradável temperatura; entretanto, ainda assim se verifica o curioso costume de não aproveitar os primeiros sorvos.

Em busca de uma explicação, chegamos novamente aos primeiros anos da História do Mate...

Os jesuítas, mesmo depois de terem permitido o livre uso do mate, e mesmo depois de se terem entregue ao franco comércio da erva, nunca tiveram grande simpatia por esta bebida, principalmente porque - devido à maneira rústica como era preparada nos primeiros tempos - ela conservava propriedades muito fortes, inclusive - diziam - com respeito a sexo. Assim, depois de muitas prédicas em favor da castidade e da continência, os missionários viam toda a sua eloqüência catequética vencida por alguns sorvos de “caá-í”. E se indagavam então: Se a erva estava bendita por São Tomé - como explicar as “ânsias” motivadas pelo uso constante da bebida? como explicar as freqüentes inchações, cólicas e até mesmo acessos de loucura que acometiam os índios?

Foram, os guaranis quem trouxeram a resposta aos missionários, agregando mais uma conta ao seu infindável rosário de lendas:

Anhangá, o Deus do Mal, nunca pudera se conformar com a vitória que Zumé tivera sobre ele, bendizendo a erva-mate e ensinando o seu uso aos selvícolas. Aquela erva, a quem Anhangá havia dado propriedades venenosas, perdera todo o efeito maligno ao contato com o fogo de S. Tomé. E o veneno se tomara remédio... Anhangá sofria com isso, e sempre que possível distilava algumas gotas maléficas na infusão nativa - algumas vezes aquecendo-se ao fogo do carijo e inoculando seu mal no suor dos ervateiros, outras vezes penetrando, alta noite, nos toldos guaranis e indo soprar o veneno de seu hálito de cuia em cuia. Aí estava, pois, a razão de muitas vezes a erva-sagrada produzir efeitos diabólicos: eram as artes de Anhangá!

Só mais tarde é que os feiticeiros descobriram uma maneira eficaz de furtar à terrível influência do deus-mau: bastava não se tomar a primeira cuia de mate. Os primeiros goles eram atirados às costas, cuspindo-se por cima do ombro esquerdo, e depois por cima do ombro direito.

Este ritual se foi simplificando com o correr dos tempos, mas ainda hoje, como vimos, persistem os vestígios da antiga superstição.

É bom dizermos, a esta altura do relato, que as diabruras de Anhangá, mal vistas pelos jesuítas, surtiram efeito contrário entre os conquistadores brancos. Velhos guerreiros, perdidos nestas selvas desertas da América, encontraram um lenitivo para suas tristezas buscando uma cuia de erva mate especialmente preparada por índias feiticeiras. Durante a conquista, o mate também proporcionou este rendoso comércio: era um filtro de amor.

Mas não só de Anhangá sofreu o mate influências maléficas. Mesmo após ter aquele deus desaparecido do culto americano, com o desaparecimento dos povos que o temiam, encontramos o mate como fácil veículo de bruxarias. E ainda hoje vemos caboclos jurando por tudo que sua urucubaca foi proveniente de um mate enfeitiçado.

Aliás, já o célebre Martin Fierro, procurando uma explicação para a sua infindável desdita, ouvira de um velho ermitão:

 

‘Hermano, le han hecho daño,
y se lo han hecho en un mate.
Por verse libre de usté
lo habrán querido embrujar”.

 

Trecho extraído do livro "História do Chimarrão", de Barbosa Lessa.

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