A ILUSÃO DOS NEOBOBOS


FHC chegou a ver na globalização neoliberal sinais de “um novo Renascimento”.

Em que se apoiava o movimento que seduziu as elites em todo o mundo e suscitou, na periferia, inúmeros programas de estabilização como o Real?

 


Para a grande maioria dos brasileiros, os mecanismos que mergulharam o país na crise permanecem inexplicados. Até há poucas semanas, o governo e os jornais insistiam que as dificuldades do real eram contratempos menores, provocados por turbulências na Ásia. O Brasil estava tão bem que provavelmente poderia tirar proveito das dificuldades alheias, como disse certa vez o presidente da República. Havia duas razões para nosso êxito:


1. Estávamos “deixando de ser caipiras” (outra expressão de FHC). Tínhamos percebido que para chegar ao progresso era preciso abandonar a idéia ultrapassada de seguir um projeto nacional autônomo e integrar o país ao - mais uma vez, palavra ao Presidente -- “novo Renascimento”  que a globalização neoliberal estava inaugurando; 2. Esclarecidas e preparadas, as elites brasileiras haviam gerado uma equipe de economistas capazes de arquitetar o Plano Real. Autêntica obra de arte da ciência econômica, ele liquidara a inflação e dotara o país de uma moeda estável e forte. Asseguraria agora nosso prestígio no exterior, e tornaria mais suave nosso caminho rumo ao Primeiro Mundo.

Agora que a crise fez em pedaços cada uma dessas idéias, é importante entender o que garantiu o prestígio delas, por tanto tempo. Entre 1985 e 97, o neoliberalismo viveu seu breve esplendor. Foi nesse período que caíram o muro de Berlim e a União Soviética; que partidos conservadores conquistaram ou mantiveram o poder nos EUA e em quase todos os países europeus; que Francis Fukuyama enxergou o “fim da História” e que... um grande volume de créditos, vindos do centro do capitalismo, voltou a irrigar as economias da periferia.

Para economistas como o francês François Chesnais, o fenômeno foi conseqüência direta de uma mudança profunda no “regime de acumulação” capitalista. A fase anterior, marcada pela expansão planetária da grande produção fordista e das multinacionais, pelas políticas de “substituição de importações” nos países em desenvolvimento, por certas concessões aos assalariados e por controle estatal rigoroso sobre os mercados financeiros, havia permitido a reconstrução do mundo no pós-guerra -- mas estava esgotada. As taxas de lucro e os índices de crescimento econômico eram medíocres desde meados dos anos 70. A economia norte-americana, durante décadas motor de todo o bloco ocidental, patinava num lamaçal de perda de dinamismo, inflação alta e déficits públicos crescentes. As economias do “terceiro mundo” - em especial as latino-americanas, que nas décadas anteriores haviam vivido uma modernização notável -- estavam afundadas num endividamento externo cujas conseqüências políticas eram imprevisíveis.

A partir do início do início dos anos 80, o capitalismo tentará encontrar a saída para a crise num novo ciclo de concentração de renda e poder. Para contrariar os que crêem na força absoluta dos mercados, Chesnais gosta de lembrar que as mudanças não eram “naturais”: foram impostas pela ação política do Estado, numa espécie de “revolução conservadora”.

Sob a liderança dos governos de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA, os países ricos agirão para aumentar a produtividade, através da economia de escala proporcionada pelas fusões e aquisições; para quebrar o poder do trabalho organizado e evitar que parte dos lucros se “disperse” em conquistas salariais; para fechar as “janelas de oportunidade” que se abriam aos países da periferia; para quebrar as barreiras comerciais que impediam as grandes corporações de concentrar globalmente sua produção; e, acima de tudo, para derrubar um a um os controles sobre os mercados financeiros.

O economista norte-americano Robert Guttmann, professor da Universidade de Hofstla, é provavelmente o maior estudioso desse último movimento. Inspirado em Marx, mas ciente da necessidade de atualizar o pensamento marxista, ele escreveu uma série de obras sobre as transformações profundas operadas na própria natureza do dinheiro, ao longo deste século. Guttmann vê duas mudanças dramáticas:

* A partir dos anos 30, nos EUA, e do pós-guerra, no resto do mundo, os Estados livram-se da responsabilidade de manter depósitos em ouro para honrar as emissões de moeda; e permitem que os bancos emprestem dinheiro muito além de seu volume de depósitos. O resultado é uma explosão da capacidade de crédito, que ajuda a explicar a ausência de crises devastadoras do capitalismo entre 1929 e 1997. Quando a capacidade de consumo é muito menor que a produção, os governos estimulam os bancos a emprestar: a antecipar às empresas e aos consumidores a parcela que lhes caberá sobre a riqueza que será gerada no futuro. Para limitar o poder dos mercados financeiros, os Estados estabelecem todo tipo de controle. Entre dezenas de outras restrições, os bancos dos EUA, centro do sistema, não podem funcionar nacionalmente; nem comprar títulos do próprio governo americano ou de outras nações; nem cobrar juros, ou remunerar depósitos, acima ou abaixo das faixas estreitas ditadas pelas autoridades.  

* Desde o início dos anos 70 - mas fundamentalmente a partir de 1980 - quase todos estes regulamentos serão progressivamente eliminados. Guttmann qualifica o processo, sugestivamente, como a “privatização do dinheiro”. Os bancos, e em seguida os fundos de pensão e de investimento, as empresas seguradoras, as demais instituições financeiras, assumem aos poucos o controle dos poderosos mecanismos que os Estados haviam criado para expandir ou restringir o crédito, estimular ou desaquecer a economia, transferir riquezas. Ao fazê-lo, porém, já não se orientam pelos interesses do conjunto da economia capitalista: buscam simplesmente seu proveito próprio. Obcecados pelo cálculo egoísta, não são capazes de enxergar que os ganhos auferidos na esfera financeira são insustentáveis, quando não estão apoiados na produção e no consumo de bens e serviços reais.

A partir da segunda metade dos anos 80, o fim dos controles sobre dos mercados financeiros gerou uma enorme massa de capitais à procura de valorização. A liberação das taxas de juros  transformou a compra de títulos das dívidas públicas num negócio altamente vantajoso: entre 1980 e 91 o volume de recursos aplicados nesses papéis pulou de US$ 1,8  trilhão para US$ 8,5 trilhão. Além de atrair dinheiro das grandes corporações, os novos mercados despertaram a cobiça dos pequenos investidores: entre 1980 e 93, os ativos dos fundos mútuos pularam de US$ 134 bilhões para US$ 1,075 trilhão. A privatização total ou parcial dos sistemas de Previdência Social - outra marca do neoliberalismo - jogou mais lenha grossa na fogueira.  


O gráfico abaixo demonstra que boa parte do dinheiro rumou para a periferia do sistema, onde a rentabilidade sempre foi maior. Os países candidatos a receber o novo investimento precisavam, no entanto, atender a certas exigências. As legislações  nacionais deveriam ser modificadas, para permitir ao dinheiro que entrava liberdade para sair a qualquer momento, e sem maiores formalidades. A estabilização da moeda e dos preços era muito recomendável, tanto para evitar súbitas desvalorizações do capital investido quanto para reduzir os riscos de sobressaltos políticos. A expressão nova que foi cunhada para designar os países que aceitavam as regras é reveladora. Não éramos mais nações em desenvolvimento, mas apenas mercados emergentes.

No Brasil, onde as forças à esquerda já estavam desorganizadas, os rios de dinheiro que entravam multiplicaram como nunca a confiança e a soberba dos conservadores. Os partidários de um projeto de desenvolvimento autônomo, do controle público sobre as telecomunicações, energia e petróleo, da distribuição de riquezas através das lutas dos trabalhadores, foram ridicularizados e taxados de anacrônicos. A ideologia dominante mandou reduzir, alegremente, tudo a dinheiro: da Telebrás a Previdência Social; das tradicionais empresas brasileiras adquiridas por corporações estrangeiras aos grandes craques do futebol vendidos a clubes no exterior, e cujo espaço na imprensa brasileira já não estava relacionado a seu talento, mas ao montante de seus contratos em dólares.

Para que a ofensiva conservadora se concretizasse, era preciso, porém, oferecer ao conjunto da população algum benefício real, ainda que limitado e temporário. No próximo capítulo da série, veremos como os dólares ajudaram a derrubar a inflação - e porque esta suposta estabilidade quebrou o país...

 

Fonte:  Resenha da Internet - 03/Fev/1999