ROBERTO MARINHO É JULGADO POR FRAUDES EM DOCUMENTOS
13 de Junho de 2002
 

O juiz Leandro Ribeiro da Silva, da 41ª Vara Cível do Rio de Janeiro, deve realizar hoje (12/Jun), às 14h30m, audiência de instrução e julgamento do processo movido contra a TV Globo, Roberto Marinho, seus filho Roberto Irineu, João Roberto e José Roberto, pelos espólios de Manoel Vicente da Costa, de Hernani Junqueira Ortiz Monteiro e outros, para anular a negociação da compra da antiga TV Paulista pela Organização Globo, por fraude documental.

Trata-se de uma Ação Declaratória de Inexistência de Ato Jurídico, que objetiva tornar sem eficácia a transferência de ações ordinárias e preferenciais de ex-acionistas da antiga Televisão Globo de São Paulo para Roberto Marinho. Segundo a perícia grafotécnica anexada aos autos, a cessão de 52% do capital social inicial foi grosseiramente fraudada, através de procurações e recibos apócrifos e anacrônicos em nome de sócios falecidos há muito tempo.

Estranheza

O que é mais grave: estranhamente, mas talvez até por conta da estranheza que o negócio revelava, durante 12 anos a transação não foi levada a registro, como exige a lei, nem comunicada à Junta Comercial ou Bolsa de Valores, assim como não foi autorizada pelas autoridades federais competentes em vista da natureza da sociedade de que se tratava (Concessão para exploração de serviço público de televisão), de conformidade com o que determinam os artigos 90 e 98, do Decreto no. 52.797, de 31 de outubro de 1963, ao estabelecer:

"Artigo 90 - Nenhuma transferência direta ou indireta de concessão ou permissão, poderá se efetivar sem prévia autorização do governo federal, sendo nula, de pleno direito, qualquer transferência efetivada sem observância desses requisitos;"

"Artigo 98 - As empresas concessionárias e permissionárias de serviços de radiodifusão não poderão alterar os respectivos atos constitutivos, estatutos ou contratos, nem efetivar transferência de cotas sem prévia autorização do poder concedente".

Atos nulos

Juridicamente, esses atos nulos não geram direitos. Foram flagrantemente praticados de forma dissimulada e agora podem justificar, inclusive, a abertura de processo de cassação da concessão para a exploração do referido serviço pela atual Televisão Globo de São Paulo Ltda.

Nos autos, que não correm sob segredo de Justiça e podem ser consultados livremente por advogados, há a comprovação da falsidade documental argüida contra Roberto Marinho e a TV Globo.

Em síntese, na ação os herdeiros dos antigos sócios apontam a inexistência do ato jurídico que acabou propiciando a transferência do controle da antiga Rádio Televisão Paulista S/A para seus atuais donos, em 1965, quando transformou-se na Televisão Globo de São Paulo S/A.

Esta negociação foi renovada em 1975, com amparo em documentos que o Instituto Del Picchia, de São Paulo, por meio de laudo pericial grafotécnico, já definiu como falsos, anacrônicos e fabricados, que contaminaram irremediavelmente o negócio, agora arguido como inexistente pelos representantes dos espólios, por total ausência de consentimento dos titulares dessas ações, já que mortos de longa data.

Perito comprovou que fraudes são grosseiras

Por se tratar de documentos que embasaram pedido oficial de transferência de controle acionário de emissora para terceiro, envolvendo concessão para a exploração de serviço público de televisão, cercou-se o Instituto Del Picchia de todos os cuidados na elaboração do trabalho pericial.

No laudo, o perito acentua que "constam dos citados documentos elementos inexistentes às épocas consignadas, isto é, temos a presença de "anacronismos intransponíveis", expressão jurídica que significa a menção de fatos futuros referidos em documento com data anterior à sua existência ou ocorrência.

"Anacronismo"

Causou estranheza ao perito, em especial, o fato de documentos usados para a efetivação da venda das ações da TV Paulista para a Organização Globo, via procurações e substabelecimentos, com datas de 1953 e 1964, conterem números de CIC dos outorgados e substabelecidos, quando é de conhecimento público que esse controle só passou a existir e a constar de documentos oficiais, a partir de 1970.

E assinalou o especialista grafotécnico do Instituto Del Pecchia: "Diante da contundência do anacronismo intransponível, presente e comprobatório da falsidade tanto das vias carbonadas como das vias xerocopiadas, praticamente desnecessárias outras provas técnicas, existentes em abundância nas pouco habilidosas fabricações de documentos com datas espúrias, agora limitadas aos originais de vias carbonadas".

Tudo falso

Diz o perito: "Por conseguinte, diante dos fatos técnicos expostos e demonstrados, sem embargo de eventuais exames dos originais das peças xerocopiadas poderem trazer novos e mais abundantes, porém, despiciendos elementos demonstrativos da falsidade, justifica-se a inicialmente sintetizada e ora repetida conclusão pericial:

São falsas as datas de 1953 e 1964, consignadas na procuração e substabelecimentos questionados, haja vista que:

a) - os 5 documentos, em especial, as vias carbonadas cujos originais físicos foram exibidos, ofertaram provas materiais de produção concomitante, de lavra conjunta;

b) - os documentos em tela foram produzidos, efetivamente, entre 1974 e 1975".

As ações

Outra questão abordada no processo e de grande repercussão foi a transferência de ações nominativas ordinárias e preferenciais da Televisão Globo de São Paulo, pertencentes a 650 acionistas tidos como mortos ou não localizados, para o acionista controlador (48% do capital social inicial) com base em Assembléia Geral Extraordinária presidida pelo próprio Roberto Marinho, em 30 de junho de 1976.

Nessa ocasião, em pequeno edital divulgado no "Diário Oficial do Estado" constou que os acionistas que não comparecessem à Assembléia teriam suas ações subscritas pelo acionista majoritário para regularizar de vez o quadro de acionistas da sociedade, o que vinha sendo cobrado pelas autoridades federais desde 1965 e que ignoravam totalmente a anterior pseudo-compra das ações dos espólios por parte do atual controlador.

Falecidos

Como a maioria dos acionistas minoritários, segundo publicação da própria emissora, feita em novembro de 1965, já teria morrido, na verdade, a citada Assembléia acabou aprovando a cessão dessas valorizadíssimas ações para o empresário Roberto Marinho por valor irrisório, apenas Cr$ 1,00 (hum cruzeiro) por ação.

Esse procedimento inédito foi autorizado, posteriormente, pela Portaria 430/77, de 27 de janeiro de 1977, do Dentel, sob a justificativa de facilitar de vez a regularização do quadro de acionistas da sociedade, o que, no entender dos autores e de juristas, é descabido, pois o governo não tem poderes para desconstituir a posse de ações adquiridas e totalmente integralizadas por particulares, mesmo que falecidos, e muito menos legitimidade para referendar essa manobra societária, em detrimento de seus herdeiros.

Veja quem foi dado como morto ou desaparecido

Entre os 650 acionistas fundadores da emissora, dados como mortos, não localizados ou desinteressados das ações da empresa que tinham, encontravam-se, segundo informação inserida nos autos do processo, pelos representantes da própria Globo, figuras das mais destacadas do Estado e cujos filhos e herdeiros, também notoriamente conhecidos, poderiam ser facilmente localizados.

A seguir, a relação de alguns acionistas que tiveram suas ações subscritas por Roberto Marinho (48% do capital social inicial) porque mudaram de endereço, faleceram ou não se interessaram em comparecer à Assembléia Geral Extradordinária convocada para 30 de junho de 1976 e sobre cuja realização, por certo, se mortos, nem ficaram sabendo e muito menos seus herdeiros:

"José Ermírio de Moraes (pai de Antônio Ermírio), Antonio Silvio Cunha Bueno, Cincinato Braga, Waldemar Seyssel, Paulo Taufik Camasmie, Ângelo Fanganiello, Oscar Americano de Caldas Filho, Amador Bueno de Campos Gatti, Constantino Ricardo Vaz Guimarães, Bento do Amaral Gurgel, Samuel Klabin, Abraão Jacob Lafer, Guerino Nigro, Cláudio de Souza Novaes, José Pillon, Brasílio Rossetti, Francisco Rossi, Eduardo Salem, Rubens Salem, Alfredo Savelli, Rafael Noschese, Oswaldo Scatena, Armando Wilson Schurachio, Oswaldo Schmidt, Christiano Altenfelder Silva, Vicente Amato Sobrinho, Edgard Pinto de Souza, René de Castro Thiollier, Paulo e Romeu Trussardi, Sylvio Bueno Vidigal e muitos outros.

Rendimentos

As ações originais desses acionistas teriam sido multiplicadas, ao longo dos anos, milhares de vezes, por conta dos lucros e dividendos reinvestidos na própria empresa, pelo acionista controlador, que posteriormente transformou-a de sociedade anônima em sociedade limitada.

Uma curiosidade: em sua contestação, a família Marinho frisa que "o pleito dos autores não passa de uma aventura desonesta com que tentam auferir algum ganho mesmo que manifestamente indevido".

Contudo, por via das dúvidas, impugnaram o valor da causa, atribuindo-lhe valor próximo a R$ 70 milhões, muito embora se trate de simples Ação Declaratória de Inexistência de Ato Jurídico, limitada a discutir a existência e a validade de contratos firmados com base em procurações e substabelecimentos classificados como falsos e anacrônicos por renomada instituição especializada em produzir laudos documentoscópicos.

Sumiço

Nos autos, há referência também ao desaparecimento do Processo Administrativo nº 10.810/65 (do Contel), que trata do ingresso do jornalista Roberto Marinho como controlador de 90% da antiga Rádio Televisão Paulista S/A e depois Televisão Globo de São Paulo S/A, em Assembléia Geral Extraordinária realizada em 10 de fevereiro de 1965, e com acionistas ausentes ou mortos sendo representados por meio de procuradores desqualificados para tanto, como é o caso de Manoel Bento da Costa, Hernani Junqueira e outros.

Isto, sem mencionar a desconsideração aos direitos dos acionistas minoritários de subscreverem as novas ações e que foram subscritas, na ocasião, em sua totalidade, só pelo novo acionista majoritário (Roberto Marinho), por conta de empréstimo que teria feito à empresa de comunicação.

 

 Fonte: Tribuna da Imprensa, 12 de Junho de 2002