VENEZUELA DERROTA GOLPISTAS E IMPRENSA
16 de Abril de 2002

Por Sebastião Nery

Em 89, logo depois da posse de Carlos Andres Perez, presidente da social-democracia na Venezuela (os tucanos de lá) e vice-presidente da Internacional Socialista na América Latina, no seu segundo governo, fui ao palácio de Miraflores, em Caracas, para uma entrevista, que publiquei aqui.

Eu o conhecia de Madri, de um mesmo hotel, quando ele lá se acoitou durante os processos depois do primeiro governo, de 74 a 78. Na saída do palácio, já de noite, ele me perguntou onde ia jantar. Disse-lhe que na casa de seu e meu amigo Sebastian Alegretti, representante da Venezuela no BID e no Banco Mundial e ex-embaixador no Brasil.

Da varanda do palácio, o presidente, baixo, atarracado, com seu terno branco, sua cara de índio e os cabelos bem negros, estendeu o braço curto e apontou para uns morros, não muito longe.

- Você vai para ali. É onde moramos nós, os ricos. Os pobres vivem bem mais longe, naqueles cerros lá ao fundo. Somos 20% do país, eles são 80%. Nós governamos, mandamos, temos o dinheiro e às vezes pensamos que não precisamos deles. Mas a palavra final acaba sendo sempre deles. Eles é que elegem. Só ganha quem tem o voto deles. E os governos, aqui, só se sustentam enquanto têm o apoio deles. Quando perdem, podem até durar algum tempo, mas é um engano, porque a crise passa a comandar o país. Mesmo as nossas ditaduras só duraram enquanto eles não desceram. Quando descem, por mais brutal que seja a violência do governo, o país perde o equilíbrio e um dia o governo acaba mudando.

 

E o simpático Andres Perez se despediu sorrindo:

- Já que você vai hoje jantar conosco, com os ricos, não esqueça de ir lá, amanhã, ver os pobres, saber onde vivem, como vivem, o que pensam.

Fui algumas vezes, em várias viagens. E foi assim que conheci os ricos e os pobres da Venezuela, em Caracas e no interior, nos morros dos ricos e nos morros dos pobres.

 

Os morros desceram

Toda a sociologia e a politiquês do que aconteceu na semana passada, na Venezuela, o golpe e o contragolpe, a derrubada e a volta de Hugo Chávez, estão explicadas nestas poucas linhas de ontem do excelente repórter da "Folha de S. Paulo", Marcio Aith, que está lá:

"Foram se juntando ao redor do palácio, na manhã de sábado, para protestar contra a deposição de Chávez. Às 2,56 de domingo, quando um helicóptero trouxe o presidente Hugo Chávez, a multidão já era de centenas de milhares de pessoas. Era impossível contar. Eles desceram dos morros ao redor de Caracas a pé, de bicicleta, em motos e caminhões.
Alguns usavam chinelos, outros cruzaram descalços os bairros de classe média que separam seus bairros pobres do palácio presidencial".

Na quinta-feira, a Fedecâmaras, a central patronal dos grandes empresários, mobilizada abertamente pelos grandes jornais e TVs e por baixo do pano pela Embaixada norte-americana, havia reunido "milhares de pessoas" para apoiar os militares golpistas que estavam derrubando o presidente. Eram "milhares de pessoas". Mas, quando os morros desceram para reagir contra o golpe, eram "centenas de milhares" de pessoas. Os 80% pobres puseram os 20% ricos para correr.

 

O papelão da imprensa

E a imprensa, a de lá e a de cá, a da Venezuela e a do Brasil, arrancou a máscara, apoiando um golpe claro, escancarado. Os jornais de Caracas e do Brasil já vinham, há dias, histericamente, pedindo o golpe. Comemoraram nas manchetes e editoriais dos dois primeiros dias.

Apoiaram, desde o primeiro instante, o assalto do governo pelo empresário Pedro Carmona (até fisicamente se parece com Antonio Ermirio), presidente da Fedecâmaras, que logo abriu o jogo. Foi posto lá com apoio total dos Estados Unidos, das empresas internacionais de petróleo e da imprensa, e suspendeu a Constituição, dissolveu o Congresso, destituiu o Supremo Tribunal. Era a ditadura escrachada.

E sempre com o mais exaltado apoio da imprensa (a de lá e a de cá). Depois, a grande imprensa enfiou o rabo entre as pernas, e sumiram:

"Segundo as redes privadas de TVs, até as 20 horas de sábado, não houve manifestações populares em favor de Chávez, o que houve foram tumultos. Mas logo encerraram suas transmissões com medo de terem suas sedes depredadas, e os jornais fecharam mais cedo com medo da reação".

 

Uma lição

Está aí a grande lição do golpe da Venezuela. Essa gente, esses neoliberais (que no Brasil se chamam tucanos e apóiam José Serra) falam de democracia e legalidade da boca para fora. Querem o poder, a qualquer preço.

Para conquistá-lo e mantê-lo, fazem qualquer coisa, jogam sujo, como o governo de Fernando Henrique. E, quando não ganham no voto, compram a grande imprensa, apelam para o golpe, apóiam o golpe para mamar no golpe.

 

Fonte: Tribuna da Imprensa, 16 de Abril de 2002.