
A ERA DE FRANKENSTEIN 03 de Março de 2001
Por Eduardo Galeano *
Em seu romance Admirável
Mundo Novo, Aldous Huxley havia profetizado
a fabricação de seres humanos em série. Em
tubos de ensaio de laboratórios, os embriões se desenvolveriam
de acordo com sua futura função na escala social,
desde os alfas, destinados ao mando, até os ipisilones, produzidos
para a servidão.
Setenta anos depois, a biogenética
nos promete, como presente do recém-nascido milênio,
uma nova raça humana. Mudando o código genético
das gerações futuras, a ciência produzirá
seres inteligentes, belos, saudáveis e talvez imortais, de
acordo com o preço que cada família possa pagar. James
Watson, prêmio Nobel, descobridor da estrutura do ADN e chefe
do Projeto Genoma Humano, predica o despotismo científico.
Watson se nega a aceitar limite algum para a manipulação
das células humanas reprodutivas: nenhum limite à
pesquisa, nem ao negócio. Sem papas na língua, proclama:
"Devemos nos manter à margem dos regulamentos e das
leis".
Gregory Pence, que dita a cátedra de
ética médica na Universidade de Alabama, reivindica
o direito dos pais a escolher os filhos que terão, "da
mesma forma que os criadores fazem cruzamento buscando o cão
mais adequado a uma família".
E o economista Lester Thurow, do Massachusetts
Institute of Tecnology, exitoso teórico do êxito, se
pergunta quem poderia negar-se a programar um filho com maior coeficiente
intelectual. "Se o senhor não fizer isso" -- adverte
-- "seus vizinhos farão, e então seu filho será
o mais bobo do bairro".
Se a sorte nos acompanhar, as estufas da futura
geração irão gerar super-crianças parecidas
a esses gênios. O melhoramento da espécie humana já
não irá exigir os fornos a gás onde a Alemanha
purificou a raça, nem a cirurgia que os Estados Unidos, a
Suécia e outros países realizaram para evitar que
fossem reproduzidos os produtos humanos de baixa qualidade. O mundo
fabricará pessoas geneticamente modificadas, como já
fabrica alimentos geneticamente modificados.
2001, odisséia no espaço: já estamos em 2001 e já comemos comida
química, como havia anunciado, há mais de trinta anos,
o filme de Stanley Kubrick. Agora, os gigantes da indústria
química nos dão de comer. Questão de siglas:
depois de produtos como o DDT, que finalmente foram proibidos quando
já fazia anos que se sabia que davam mais câncer que
felicidade, chegou a vez dos GM, os alimentos geneticamente modificados.
Dos Estados Unidos, da Argentina e do Canadá, os GM invadem
o mundo inteiro, e somos todos cobaias desses experimentos gastronômicos
dos grandes laboratórios.
Na verdade, nem sabemos o que estamos comendo.
A não ser por raras exceções, as etiquetas
dos alimentos não nos advertem que eles contêm ingredientes
que sofreram a manipulação de um ou de vários
genes. A empresa Monsanto, a principal abastecedora, não
inclui esse dado em suas etiquetas de origem, nem mesmo no caso
do leite proveniente de vacas tratadas com hormônios transgênicos
de crescimento. Esses hormônios artificiais favorecem o câncer
da próstata e dos seios, segundo várias pesquisas
publicadas em The Lancet, Science, The International Journal
of Health Services e outras revistas
científicas, mas a Food and Drug Administration dos Estados
Unidos autorizou a venda do leite sem menção nas etiquetas,
porque afinal das contas os hormônios apressam o crescimento
e aumentam o rendimento, e portanto, também aumentam a rentabilidade
e o lucro. Primeiro o que vem primeiro, e em primeiro lugar, a saúde
da economia. Seja como for, quando a Monsanto é obrigada
a confessar o que vende, como no caso dos herbicidas, a coisa não
muda muito. Faz alguns anos a empresa precisou pagar uma multa por
causa de "setenta e cinco menções inexatas"
nos galões do venenoso herbicida Roundup. Foi a preço
de ocasião. Três mil dólares por cada mentira.
Alguns países se defendem, ou pelo
menos, tentam se defender. Na Europa, a importação
de produtos da engenharia genética está proibida em
alguns casos, e em outros, está submetida a controle. Desde
1998, por exemplo, a União Européia exige etiquetas
claras para a soja geneticamente modificada, mas é muito
difícil levar as boas intenções à prática.
O rastro se perde em múltiplas combinações:
segundo o Greenpeace, a soja GM está presente em 60% de toda
a comida processada que é oferecida nos supermercados do
mundo.
Nas manifestações ecologistas,
um grande peixe azul ergue um cartaz: "Não se metam
com meus genes". Ao lado, um tomate gigante exige a mesma coisa.
No mundo inteiro multiplicam-se as vozes de protesto. A atitude
européia é resultado da pressão da opinião
pública. Quando os granjeiros franceses incendiaram os silos
cheios de milho transgênico, por causa do dano notório
que trazia ao ecossistema, o agitador camponês José
Bové converteu-se num herói nacional, num novo Asterix,
que alegou em sua defesa: Quando foi que nós, os granjeiros
e os consumidores, fomos consultados sobre isso? Nunca.
O governo francês, que havia metido
Bové na cadeia, desautorizou os cultivos de milho inventado
pela biotecnologia. Algum tempo depois, a empresa norte-americana
Kraft Foods devolveu milhões de tortilhas de milho, marca
Taco Bell, sufocada pelas queixas dos consumidores que tinham sofrido
reações alérgicas. Enquanto isso, a secretária
de Estado Madeleine Albright dizia e repetia na Europa, conforme
obrigação prioritária da diplomacia dos Estados
Unidos: "Não existe nenhuma prova de que os alimentos
geneticamente modificados sejam prejudiciais à saúde
ou ao meio ambiente".
Os europeus têm motivos muito concretos
para desconfiar das piruetas tecnocráticas na mesa de jantar.
Estão escaldados pela sua recente experiência com as
vacas loucas. Enquanto comiam pasto ou alfafa, durante milhares
de anos, as vacas haviam se comportado com uma cordura exemplar,
e haviam aceitado, resignadas, seu destino. Foi assim até
que o sistema louco que nos rege decidiu obrigá-las ao canibalismo.
As vacas comeram vacas, engordaram mais, ofereceram à humanidade
mais carne e mas leite, foram cumprimentadas pelos donos e aplaudidas
pelo mercado -- e ficaram loucas de pedra. O assunto deu motivo
a muitas piadas, até que começou a morrer gente. Um
morto, dez, vinte, cem ...
Em 1996, o ministério britânico
de Agricultura havia informado à população
que a ração de sangue, sebo e gelatina de origem animal
era um alimento seguro para o gado e inofensivo para a saúde
humana.
* Eduardo Galeano é escritor
uruguaio, autor de As veias
abertas da América Latina.
Fonte: Oficina de Informações, 28/02 a 02/03/2001
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