DELÍRIO (NEO)LIBERAL

A Real face do Capitalismo

Por Barbosa Lima Sobrinho

 

O professor Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, escreve que "uma parte do que de importante ocorre no mundo é em segredo e em silêncio, fora do alcance dos cidadãos. E o dilema para a democracia daqui resultante é que os segredos só podem ser conhecidos a posteriori, depois de deixarem de ser, depois de produzirem fatos consumados que escaparam ao controle democrático". Refere-se ele ao Acordo Multilateral de Investimentos, AMI, que vem sendo negociado na surdina, entre os países desenvolvidos da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), por iniciativa dos Estados Unidos e da União Européia, com cinco países observadores, entre eles o Brasil.

O que vem a ser esse acordo pode, inicialmente, ser resumido numa frase de Renato Ruggiero, diretor-geral da OCDE: "Com este documento nós estamos escrevendo a Constituição de uma economia global unificada". Logo, fica-se sabendo por que até 1997 as negociações do AMI eram secretas. Ou seja, o acordo não era conhecido sequer pelos parlamentares dos países que a compõem. E por que esse cuidado, ou melhor, esse medo da divulgação dos seus termos? É explicável, bastando citar algumas das condições conhecidas desse acordo.

Na verdade, o AMI é uma espécie de carta magna das corporações internacionais, concebida com o objetivo de vigência mundial, para respaldar suas atividades, por cima das constituições e instituições dos países onde atuam. Cria uma nação corporativa, virtual, acima das nações convencionais, movida por um único e superior objetivo: o lucro do capital internacional. Deus seria o mercado, em nome do qual tudo é válido. Nos seus termos conhecidos, os investidores estrangeiros podem investir em qualquer área, setor ou atividade, sem qualquer tipo de restrição, podendo contestar qualquer política ou ação governamental, desde que entendam que essa política ou essa ação venha a prejudicar seus lucros. Muito ao contrário, o governo tem a obrigação de assegurar os investimentos externos e garanti-los contra tudo que possa afetar sua rentabilidade.

Os governos deixam de ser guardiães de seus contribuintes que os sustentam e passam a representar uma espécie de guarda pretoriana dos investidores externos. E, se não exercer bem essa função, cada governo passa a ser responsável por indenizações para cobrir qualquer intervenção do Estado suscetível de reduzir a capacidade das corporações de obterem um lucro maior. A simples perda da oportunidade de lucro, algo em princípio subjetivo, já justifica o direito à indenização.

E, pior, quem escolhe o foro para tais litígios são as corporações internacionais, ficando o Estado sem qualquer status jurídico-político, sem poder negar o tribunal escolhido, nem submeter os litígios à arbitragem internacional. Os termos desse acordo engessam toda e qualquer ação do governo, chegando ao ponto de proibir desapropriações. E a participação no acordo de qualquer país não pode ser por prazo inferior a 20 anos.

Como se vê, o absurdo desses termos só poderiam ser tratados em sigilo. Daí o motivo porque ficaram anos em segredo, o que tentaram alongar até onde fosse possível. Mas com a divulgação de seus termos, ainda que parcial, explodiu uma reação geral contra essa constituição ou conspiração dos países ricos. Os efeitos desse acordo poderiam ser mais adequadamente tachados de colonialistas que liberais. E esse é o caminho natural e descendente a que leva o liberalismo exacerbado, um roteiro preparado para provocar prejuízos irreparáveis aos países que ainda não se encontram no clube dos ricos, como o Brasil. Também não se poderá prever onde estará a nossa soberania, inclusive política, a não ser num dos livros-caixas ou disquetes dessas corporações, eliminando-se todo o sentido de auto-determinação e independência que ainda podemos ter. Fronteiras, claro, serão apagadas e viveremos todos na aldeia, não a global, a futurista, mas a dos indigentes, esquecidos e perdidos pelos mares do sul.

Mas há reações. Muitas organizações não governamentais, as OGNs, começaram a se movimentar e manifestar o seu repúdio a esse delírio mórbido. Uma delas, com o nome de Attac (Ação por uma Taxa Tobin de Ajuda aos Cidadãos), é comandada por Bernard Cassin, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, que recebi em casa recentemente, muito indignado com essas manobras dos países poderosos. Em reunião dessa organização em Paris, em novembro último, foi apresentada a tese contestatória para melhorar as relações internacionais de comércio. É o PLANO TOBIN, tese do economista prêmio Nobel James Tobin, que propõe normas para a taxação do capital internacional especulativo e o perdão da dívida externa dos países mais pobres. Além dessa, muitas outras sugestões estão sendo apresentadas, que não signifiquem a perda de autoridade e soberania dos países participantes, deixando-se ao governo sua função de governar. O que não chega a surpreender é que, como regra da história econômica, toda sugestão apresentada por países devedores são por princípio desconfiáveis, valendo sempre mais as que venham dos credores.

Mas contra essa reação dos donos do capital internacional não se dão por desanimados e mudaram a tática. A proposta deles agora é a de se retirar esse acordo, o AMI, do âmbito da Ocde, da qual o Brasil não faz parte, é apenas observador, e colocá-lo no campo da OMC (Organização Mundial do Comércio), da qual somos signatários. Nesse caso, naturalmente, seremos obrigados a aceitar a AMI ou sair da OMC, levando como troco um considerável prejuízo.

Tais fatos e manobras chegam a espantar aos mais incautos pelo tamanho da queda que nos querem impor, ou a que estamos sujeitos. Só posso atribuir todo esse quadro fantástico às mentalidades mórbidas que continuam atacando a independência das nações, como praga ou empecilho a ser removido para o lucro maior das empresas transnacionais e para gáudio dos intermediários sem pátria, num colossal delírio liberal.

Escrito em 12 de Setembro de 1999.