O ENCANTO DAS SERPENTES
Por Barbosa Lima Sobrinho O Banco Mundial começa a questionar a eficiência da globalização em seu Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial. Através desse documento, divulgado no último dia 15, o banco, um dos pilares do liberalismo, afirma que, mesmo com crescimento econômico, haverá perdedores e o Estado precisa criar uma rede de serviços para atender aos países pobres. O relatório constata também o aumento da pobreza no mundo e a diferença crescente entre ricos e pobres. A essa informação, junte-se a do noticiário sobre as contas do setor público do Brasil, bem resumida na principal manchete do Jornal do Comércio do dia 21 último: "Juros corroem superávit primário recorde do Brasil". E seu subtítulo diz que a rolagem da dívida custou o dobro do que o governo economizou em julho. Ou seja, estamos conseguindo economizar, mas nossos bolsos estão furados, por onde escoam todos os bilhões conseguidos duramente através de nossos impostos, fiscalização e cortes, estes em geral trazendo enorme sacrifício à população brasileira. Não deixa de ser uma triste realidade. Pagar juros é dos mais penosos empregos de reservas, sobretudo num país, como o Brasil, com tantas carências de desenvolviemnto e de combate à pobreza. E será essa uma sina eterna do país? Uma espécie de vício iniciado, desde a independência, quando fomos obrigados a assumir a dívida que Portugual tinha com a Inglaterra? A história vem de longe, mas há que considerar vários fatores que nos levaram a acreditar que endividamento externo seria solução, uma prática que, nas palavras de Galeano, era como a "morfina imprescindível". Segundo Celso Furtado, em seu excelente livro Formação Econômica do Brasil, fomos vítimas de uma política do fraco contra o rico, com uma crescente desvalorização de nossas exportações, enquanto os preços das importações continuavam estáveis. Dessa forma, seria necessário conviver com um défict eterno e nossos governos costumavam recorrer ao financiamento externo não só para tapar buracos, como também para conseguir a rolagem da dívida externa. Numa comparação com os Estados Unidos, no mesmo livro, lemos que no século XVIII as classes dominantes do Brasil, diferentemente das americanas, não eram formadas por granjeiros, fabricantes e comerciantes empreendedores. Os principais intérpretes dos ideais das classes dominantes de ambos os países, Alexander Hamilton e o visconde de Cairu, expressavam claramente a diferença entre uma e outra. Ambos tinham sido discípulos, na Inglaterra, de Adam Smith. No entanto, enquanto Hamilton se transformara num paladino da industrialização e promovia o estímulo e a proteção do Estado à manufatura nacional, Cairu acreditava na "mão invisível" que opera na magia do liberalismo: "Deixai fazer, deixai passar, deixai vender". De lá para cá, com mínimos intervalos, o Brasil continuou adotando a política do liberalismo de Adam Smith e, curioso, só recentemente achou por bem mudar esse nome para neoliberalismo, instrumento de uma chamada globalização que nada mais é que um simples intercâmbio maior e mais acelerado entre os países. Os defensores dessa política talvez sentissem a necessidade de uma nova roupagem para idéias tão antigas, nascidas no século XVIII. E a conseguiram - e os países mais pobres adoraram transformar a dependência colonial em dependência financeira. Uma forma de manter os prisioneiros endividados eternamente, à custa da depreciação de suas exportações e de juros cada vez mais altos. Se o Estado pode atrapalhar, afaste-se ele, diminua-se a sua influência e exterminen-se as empresas estatais que, com sua função social, não rezam exclusivamente pela cartilha do lucro. É perfeitamente compreesível que o capital internacional pretenda enfraquecer o poder público dos países endividados. Um devedor autoritário, ou com maior força, pode atrapalhar as negociações de rolagem da dívida e, ao final, trazer menor lucro aos donos do dinheiro internacional. Foi principalmente por essas razões que o Japão sempre recusou ofertas de empréstimos externos. Os poucos que fez foram insignificantes e nunca chegaram a causar preocupação com rolagens de dívidas. E não se diga que não havia carências, pois tratava-se de um país praticamente feudal, com uma população paupérrima, com desafios enormes como os das castas, da dificuldade lingüística, da quase inexistência de educação e de política pública de saúde. Os japoneses precisavam - e muito - de recursos, mas entenderam que melhor seria recusá-los do que cair numa dependência que poderia prejudicar o futuro do seu desenvolviemnto. E, num minúsculo território, sem recursos naturais e com todas essas dificuldades, mas com essa política e essa orientação do Estado, conseguiram chegar à posição de segunda potência mundial. Um fenômeno que estudei e escrevi no livro, Japão - o capital se faz em casa, procurando trazer o exemplo para o Brasil, que ainda continua a se encantar com as serpentes do capital internacional. Uma realidade cruel que, espero, venha a ser modificada pelas novas gerações, para conseguirmos dirigir nosso destino com total independência, pois só dessa forma poderemos alcançar um futuro mais digno para nossos descendentes. Fonte: Jornal do Brasil, 26 de Setembro de 1999. |