A ESTRANHA ÉTICA DOS JORNALISTAS
SUBMISSÃO CHIQUE

Tendo internalizado a lógica do capitalismo, a maior parte dos profissionais da imprensa adere livremente às suas exigências. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrarem. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração

Alain Accardo*


 

 



O observador dos meios de comunicações deveria partir da premissa de que os jornalistas, em sua grande maioria, não estão maquiavelicamente preocupados em manipular o público para aumentar o lucro dos acionistas das empresas em que trabalham, em particular, e dos capitalistas, em geral. Se agem como "condicionadores" daqueles a quem se dirigem, é menos pelo desejo expresso de condicioná-los que por serem eles próprios condicionados, num grau insuspeitado pela maioria. Fazendo -- ou não fazendo -- espontaneamente o que quer, cada qual põe-se espontaneamente de acordo com todos os demais. Pode-se dizer, com o poeta Robert Desnos, que obedecem à lógica do pelicano: "O pelicano bota um ovo bem branquinho/De onde sai, inevitavelmente/Um outro que faz tudo igualzinho".

Se agem como "condiciona- dores", é menos pelo desejo de condicionar do que por serem eles próprios condicionados, num grau insuspeitado pela maioria

De modo geral, os financistas e comerciantes que se apropriaram de uma parte substancial da mídia não têm necessidade de ditar aos jornalistas o que eles devem dizer ou mostrar. Não precisam violentar suas consciências, nem transformá-los em propagandistas. O senso de dignidade jornalística jamais o aceitaria. Para garantir uma informação fiel ao melhor dos mundos capitalistas, nada melhor (salvo circunstâncias e casos particulares) que deixar os jornalistas trabalharem livremente ou, para ser mais exato, deixá-los acreditar que seu trabalho não obedece a nenhum outro imperativo, a nenhum outro limite, senão os impostos pelas regras específicas do jogo jornalístico, aceitas por todos. Deve-se confiar na "consciência profissional".

 

Uma cooptação aberta ou dissimulada

Para tanto, basta entregar as rédeas do poder jornalístico nas redações aos homens e mulheres geralmente qualificados como "excelentes profissionais", o que significa que nunca deixaram de dar provas de sua adesão a uma visão de mundo cujas crenças fundamentais compartilham, explícita ou implicitamente, com seus patrões. Com profissionais ideologicamente confiáveis nos postos de comando, o mecanismo de cooptação, aberta ou dissimulada, garante, aí como em toda parte, um recrutamento destinado a impedir a entrada de raposas no galinheiro ou de hereges na missa. Esse mecanismo começa a funcionar nos cursos de jornalismo e continua permanentemente em ação nas redações dos jornais. Portanto, os meios de comunicação são solidamente dominados por uma rede à qual basta trabalhar "como se sente" para trabalhar "como se deve", isto é, em defesa das normas e valores do modelo dominante -- modelo esse onde se produziu o consenso entre uma direita em pane de idéias e uma esquerda em crise de ideais.

Um "excelente profissional" nunca deixa de dar provas de sua adesão às crenças fundamentais que compartilha, explícita ou implicitamente, com seus patrões

Mas se há um ponto sobre o qual se deve insistir é que a eficácia de tal sistema repousa fundamentalmente sobre a sinceridade e espontaneidade dos que nela investem a si próprios, mesmo que este investimento implique numa certa dose de auto-mistificação. A informação jornalística, tal como é praticada, é passível de muitas críticas e recriminações bem fundamentadas, inclusive a de enclausurar os espíritos na problemática dominante e mesmo no pensamento único. Há algo, porém, que não se pode censurar nos jornalistas, salvo, é claro, casos particulares: a boa fé com que realizam seu trabalho. Tendo internalizado perfeitamente a lógica do sistema, aderem livremente às suas exigências. Agem de forma orquestrada sem necessidade de se orquestrarem. Sua identidade de inspiração torna desnecessária a conspiração.

 

Uma mescla de lucidez e ceticismo

Se tivéssemos que resumir em poucas palavras sua crença fundamental, diríamos que eles acreditam sinceramente, no fim das contas, no saldo positivo de um capitalismo com face humana -- e acreditam firmemente que essa crença não tem nada de ideológico, nem de ultrapassado.

É lógico que, como ocorre com todos os atores de todos os campos sociais, sua visão das coisas se caracteriza por uma mescla, em doses variadas -- segundo a posição no campo --, de lucidez e ceticismo, de visto e de não-visto, ou de entrevisto.

Os meios de comunicação são solidamente dominados por uma rede à qual basta trabalhar "como se sente" para trabalhar "como se deve"

Conseguem ver claramente, por exemplo, as várias manifestações de desumanidade da ordem capitalista onde quer que esteja instaurada; mas se recusam a ver nelas um traço consubstancial, inerente à própria essência do capitalismo, transformando-a num simples acidente. Falam de "disfunções", de "desvios", de "rebarbas", de "excesso", de "ovelhas negras", condenáveis, é claro, mas que de modo algum comprometem o princípio mesmo do sistema que tendem a defender espontaneamente.

 

Fazendo o faz-de-conta-que-não-faz

Fazem uma crítica sincera, por exemplo, dos abomináveis "excessos" no que se refere à pesquisa e ao tratamento da informação-mercadoria, motivados pela concorrência, pela obrigação de rentabilidade, pelo ibope, em suma, pela lógica do mercado. Mas o fato de essa mesma lógica provocar um aumento maciço do trabalho precário nas redações -- com um contingente cada vez maior de jovens jornalistas sub-remunerados(as) e descartáveis, vergonhosamente explorados(as) por seus patrões -- não levou até agora a nenhuma mobilização da categoria comparável àquela que se fez em defesa dos 30% de redução fiscal. Não deixa de ser significativo, também, que durante a greve geral que, em 1999, afetou as redes públicas (grandes consumidoras do trabalho precário), nada tenha sido dito publicamente a esse respeito.

Há algo, porém, que não se pode censurar nos jornalistas, salvo, é claro, casos particulares: a boa fé com que realizam seu trabalho

O campo jornalístico, como muitos outros, só pode funcionar graças a algo que, objetivamente, só pode ser chamado de impostura, uma vez que ele só pode fazer o que faz -- ou seja, contribuir para a manutenção da ordem simbólica -- fazendo de conta que não o faz, como se não tivesse outro princípio além da utilidade pública e do bem comum, da verdade e da justiça. Hipocrisia ou mau-caratismo? Nem uma coisa nem outra. Nenhum sistema pode funcionar maciça e deliberadamente baseado na impostura intencional e permanente. É necessário que as pessoas acreditem no que estão fazendo e que adiram pessoalmente a uma ideologia socialmente aceita que não se pode resumir, no caso, a proclamar cinicamente "viva o reino do dinheiro, abaixo o humanismo arcaico, vamos ficar ricos e os pobres que se danem!", mas consiste em acreditar, com a maior boa-fé, que a felicidade da espécie humana exige obrigatoriamente que continuemos no seio da Igreja Liberal, fora da qual não existe salvação possível.

 

Um "materialismo" medonho

Para que a lógica econômica se torne hegemônica deve transformar-se, no coração e na mente das pessoas, em uma ideologia filosófica, ética, política, jurídica, estética etc., relativamente autônoma, sem o que elas sentiriam o peso da economia em suas vidas como uma pressão exterior insuportável, desprovida de toda legitimidade, um "materialismo" medonho. Na verdade, é próprio de qualquer sistema não permanecer fora dos agentes mas penetrar neles para moldá-los a partir de dentro, sob a forma de um conjunto estruturado de inclinações pessoais. E, por último, sua vitalidade repousa muito mais sobre a predisposição de seus membros quanto aos costumes, à sua relação com o saber, o poder, o trabalho, o tempo, e sobre suas simpatias e antipatias, relativas a práticas culturais, domésticas, educativas, esportivas etc., do que sobre suas opções e opiniões expressamente políticas. Espíritos bem condicionados são, antes de tudo e principalmente, variantes integradas ao "espírito do tempo". E este pretende estar acima de divisões políticas e consultas eleitorais.

Para resumir em poucas palavras sua crença fundamental, diríamos que eles acreditam sinceramente no saldo positivo de um capitalismo com face humana

Dessa forma, muito felizmente para os donos do Dinheiro, eles podem povoar os meios de comunicação que compraram com pessoas inteligentes, competentes e sinceras, pessoalmente condicionadas a travestir a lei da selva do capitalismo em condições permissivas e postulados indiscutíveis daquilo que chamam de "modernidade" ou "democracia de mercado".

 

O papel da nova pequena-burguesia

As conclusões válidas para os meios de comunicação valem também para segmentos inteiros da estrutura social. O microcosmo jornalístico é, nesse sentido, um espaço privilegiado para a observação in vivo do que ocorre nos campos da produção e da difusão de bens simbólicos, cuja população profissional pertence, na sua quase totalidade, às classes médias (atividades intelectuais relacionadas ao ensino, à informação, ao serviço social, à consultoria e ao recrutamento, à apresentação e à representação,etc). Foi sobretudo essa nova pequena burguesia que, entregando-se de corpo e alma a esse sistema, injetou nele a dose de humanidade, inteligência, imaginação, tolerância, psicologia, em suma, o suplemento moral necessário para que ele pudesse passar da exploração selvagem do trabalho assalariado -- que ainda grassava antes da segunda guerra mundial -- a formas aparentemente mais civilizadas compatíveis com o aumento das aspirações democráticas.

O campo jornalístico, como muitos outros, só pode funcionar graças a algo que, objetivamente, só pode ser chamado de impostura

Poderíamos então dizer que a modernização do capitalismo consistiu em desenvolver métodos de "gestão dos recursos humanos" e de comunicação visando a apresentar os abusos patronais por meio de eufemismos e a envolver psicologicamente os assalariados na sua própria exploração. Tal colaboração acarreta, sem dúvida, diversos ganhos materiais e morais, sendo o primeiro deles a garantia da subsistência dos interessados e o segundo o sentimento de uma certa importância e utilidade para seus semelhantes. O que não é pouco. Mas acontece que, por uma dessas artimanhas objetivas de que a história está cheia, seu trabalho acaba sendo muito mais útil ao sistema e aos feudos que o dominam e que, pensando servir a Deus, servem também, e às vezes principalmente, ao diabo. Mas fazem isso sub specie boni, com a consciência tranqüila, porque quase tudo que possa pesar na consciência é automaticamente auto-censurado ou transfigurado. Eles têm em si, como diria Pascal, "uma vontade de crer que supera suas razões para duvidar".

 

Uma auto-encenação constante

É possível que, pelo fato de os jornalistas dominarem profissionalmente as tecnologias do fazer-ver e do fazer-saber, a vivência no seu meio lhes permita ver que a impostura objetiva das classes médias -- que consiste em nunca ser nem nunca fazer por completo o que elas mesmas pensam que são e fazem -- se traduz numa constante auto-encenação, destinada a oferecer a si mesma embora oferecendo-a aos outros, a representação mais valiosa da sua importância.

Eles são condicionados a travestir o capitalismo em postulados indiscutíveis daquilo que chamam de "modernidade" ou "democracia de mercado"

Se é verdade que nenhum jogo social pode desenvolver-se sem que os atores aceitem, bem ou mal, "contar histórias", iludir a si mesmos e aos outros, temos de admitir que as classes médias têm uma tendência especial a "fazer cena" ou a "fazer fita". Essa propensão à dramatização de sua existência, antes de tudo narcisista, está ligada à sua inserção num espaço social intermediário, entre os dois pólos, o dominante e o dominado, do poder social.

Todos os traços característicos da pequena burguesia resultam fundamentalmente dessa posição instável entre o muito pouco e o demasiado, entre o ser e o não-ser, num mundo em que o valor socialmente reconhecido tornou-se diretamente proporcional ao grau de acumulação do capital, em geral, e do econômico em particular. "Os mais desfavorecidos", como se diz pudicamente, têm muito pouco para se preocupar em valorizar o que têm e o que são. Os mais privilegiados têm demasiado para precisar afirmar-se, oferecendo-se como espetáculo.

 

A síndrome de Emma Bovary e Julien Sorel

Mas o resultado dessa busca interminável de afirmação poucas vezes é totalmente satisfatório. Os pequenos burgueses, por sua posição intermédia, são em geral mais sensíveis à distância das posições superiores que às vantagens intrínsecas da posição ocupada. Como já notava Stendhal, "a grande aspiração é ascender à classe superior à sua, que faz de tudo para impedir essa ascensão".

Vêem as manifestações de desumanidade da ordem capitalista, mas se recusam a ver nelas um traço consubstancial, inerente à própria essência do capitalismo

Encontra-se aí uma fonte de frustração e ressentimento, uma espécie de foco patológico do reconhecimento social, que está na origem de vários casos de sofrimento existencial que poderiam ser reunidos sob o nome de síndrome de Emma Bovary e de Julien Sorel. Sofrimento tanto mais difícil de aplacar por ser estruturalmente programado, e portanto refratário a qualquer terapia. Uma pesquisa sobre o jornalismo de base fornece eloqüentes exemplos da sua relação ambígua com a posição que ocupam, ao mesmo tempo deslumbrada e exasperada, amorosa e despeitada, arrogante e dolorosa, dos dominantes-dominados, do entremeio social.

 

O sonho das ascensão social

Temos o direito de pensar que o único remédio possível consistiria em romper com a lógica do sistema. Uma tarefa difícil porque impossível de se realizar sem questionar tudo o que cada indivíduo internalizou de mais profundo, todos os elos mais entranhados, todas as adesões carnais pelas quais as pessoas interagem com um sistema que os engendrou e condicionou a fazer, de livre e espontânea vontade -- e às vezes alegremente --, o que espera que façam. Por exemplo, enfrentarem-se impiedosamente, numa competição implacável, por objetivos ilusórios e risíveis, cuja perseguição e conquista, no final das contas, não prova nada, salvo que se está muitíssimo bem condicionado.

A propensão à dramatização de sua existência está ligada à sua inserção num espaço social intermediário, entre o dominante e o dominado

Até agora os membros das classes médias, por estarem condicionados -- inclusive pela sua socialização --, trataram de cultivar com perseverança, em sua grande maioria, seu sonho de ascensão social e suas esperanças de vitória pessoal num universo cujas carências, contradições e iniqüidades são denunciadas por muitos deles. Mas essas opiniões críticas, por se restringirem ao registro político (muitas vezes politiqueiro), e o voto "à esquerda" a que costumam estar associadas, longe de por em risco a lógica dominante, têm o efeito de otimizar o funcionamento de um sistema que, além de reproduzir-se no essencial, também pode vangloriar-se de manter, nos meios de comunicação interpostos, um verborrágico debate público que quase nunca toca o essencial.



* Professor de sociologia na Universidade de Bordeaux-III, co-autor de Journalistes précaires, ed Le Mascaret, Bordeaux, 1998.

Traduzido por Rúbia Prates.

Retirado do jornal Le Monde Diplomatique
ano 1 número 4