A ESTRATÉGIA POLÍTICO-SOCIAL DO NEOLIBERALISMO
Excretos do livro "TORNAR POSSÍVEL O IMPOSSÍVEL - A ESQUERDA NO LIMIAR DO SÉCULO XXI", de Marta Harnecker*
O fracasso do socialismo real, o esgotamento do modelo do Estado benfeitor e a constatação das potencialidades que ainda tinha o capitalismo, a empresa privada e o mercado para promover o crescimento econômico, explicam porque o neoliberalismo se tenha convertido no modelo hegemônico em escala mundial. Este projeto essencialmente conservador e reacionário, que busca defender e fomentar os privilégios de uma ínfima minoria em escala mundial, trata de convencer o mundo de que não há outra alternativa que este modelo onde o mercado, e não o Estado, é que deverá corrigir as inclemências e as disfunções do capitalismo, estimulando e dinamizando as empresas e conduzindo-as a uma permanente e benéfica modernização.
DESTRUIR AS CONQUISTAS DOS TRABALHADORES O neoliberalismo se propõe destruir as conquistas dos trabalhadores: estabilidade no trabalho, salários que permitam condições de vida adequadas, segurança social, etc., e golpear suas organizações de classe, para eliminar toda resistência ao livre jogo do mercado. Advoga por um Estado mínimo, embora este só seja mínimo para defender os interesses dos trabalhadores, porque se requer um Estado forte para ir enfraquecendo a classe trabalhadora e o movimento popular e ir eliminando suas conquistas sociais, criando assim as condições políticas que requer para seu funcionamento econômico.
BUSCANDO A GOVERNABILIDADE: FACHADA DEMOCRÁTICA E FUNDO AUTORITÁRIO Como o modelo cria uma crescente desigualdade e favorece de forma bastante ostensiva uma minoria da população, o tema da governabilidade passa a ser um dos temas centrais de sua agenda política: deve resolver o problema da compatibilidade entre as instituições democráticas burguesas e os resultados econômicos do modelo. Necessita manter uma fachada democrática - eleições livres, pluripartidarismo, etc. -, porém não pode correr o risco de que maiorias eleitorais pretendam avançar por um caminho que não seja o já traçado - não devem repetir-se experiências como as de Allende no Chile - e para isso é preciso assegurar que os representantes destas maiorias tenham cada vez menos autoridade.
DEMOCRACIAS RESTRITAS OU TUTELADAS É necessário estabelecer regimes de democracia tutelada, limitada, restrita, controlada ou de baixa intensidade, segundo as denominações dos diversos autores, vale dizer, regimes que concentrem aspectos fundamentais do poder em órgãos de caráter permanente, não eletivos, e, portanto, não sujeitos a alterações produzidas pelos resultados eleitorais, como o Conselho de Segurança Nacional, o Banco Central, as instâncias econômicas assessoras, o Supremo Tribunal, o Tribunal de Contas, o Tribunal Constitucional e outros órgãos como estes. Esta situação limita drasticamente a capacidade efetiva das autoridades eleitas democraticamente. Hoje, tanto as decisões econômicas como as relativas à segurança nacional e o controle dos meios de comunicação escapam às decisões dos parlamentos. Grupos de profissionais e não de políticos são os que hoje adotam as decisões ou têm uma influência determinante sobre estas. Inclusive em determinadas áreas essenciais como, por exemplo, a econômica e a militar, surgem instituições que constituem antes a expressão nacional de um organismo supranacional: o FMI, o Tratado de Livre Comércio, o Banco Mundial com capacidade para condicionar ou impor ações fundamentais no interior dos países, à margem da opinião dos eleitores. Enquanto se aperfeiçoa a democracia, tornando mais difícil a distorção da vontade do eleitorado na votação, graças ao emprego de procedimentos de controle mais sofisticados permitidos pelas novas tecnologias da informação (não é comum hoje ver as fraudes escandalosas do passado), a expressão desta vontade sofre drásticas limitações já que se restringiu muito a capacidade efetiva das autoridades geradas democraticamente, como forma de estabelecer uma proteção contra a vontade dos cidadãos. Então, ao mesmo tempo em que se criam condições para um respeito à vontade popular nas urnas, se restringe o campo de ação dessa vontade popular ao por limites à ação de seus mandatários. Além de restringir a democracia por esta via, o Estado neoliberal utiliza as novas tecnologias para controlar a vida individual das pessoas. As tecnologias informáticas facilitam a acumulação de dados sobre a vida privada dos cidadãos a custos muito baixos, possibilitando a atuação estatal (e empresarial), preventiva da dissidência em âmbitos como o laboral, o acesso a funções públicas, etc. Outra das linhas da reforma do Estado que se começou a aplicar na América Latina a partir dos anos oitenta, é a deslocação territorial ou descentralização de certos aspectos do aparelho do Estado. Essencialmente, consiste em reordenar territorialmente o processo de urbanização e de implantação de indústrias e serviços, assim como em entregar a estados, regiões, províncias ou comunidades a responsabilidade sobre algumas tarefas de educação, saúde, assistência social, habitação e desenvolvimento econômico local. Esta reforma persegue objetivos econômicos e políticos. Por um lado, tenta facilitar o desenvolvimento do capitalismo e, por outra, fraturar o movimento popular e desviar sua atenção das lutas globais para as reivindicações locais. Entretanto, talvez seja neste processo de descentralização onde os resultados foram mais limitados. De fato, é no terreno dos governos locais onde a esquerda latino-americana avançou mais nos últimos anos. Não só conquistou crescentes espaços locais, mas fez desses, nos casos mais exemplares, lugares privilegiados para demonstrar ante a opinião pública a possibilidade de levar adiante políticas alternativas ao neoliberalismo, algo muito importante em momentos de crises de paradigmas como o atual.
FABRICANDO O CONSENSO Mas não há dúvida de que uma das coisas que mais respalda hoje a governabilidade nos países que implementaram o regime econômico neoliberal é a capacidade que têm os atuais meios de comunicação de massas para influir na opinião pública. Estes meios, concentrados cada vez mais em menos mãos, se encarregam de canalizar o pensamento e as atitudes das pessoas dentro dos limites aceitáveis para as classes dominantes, desviando qualquer desafio em potencial contra elas e as autoridades estabelecidas, antes que este possa ganhar forma e adquirir força. Uma única condição impõem os liberais burgueses para aceitar o jogo democrático: que possam domesticar o rebanho perplexo - como disse Chomsky - controlando os meios para fabricar o consenso. Ao converter a política num produto que se vende, num mercado de idéias, as classes dominantes - que monopolizam os meios de propaganda - têm as armas para conduzir o cidadão comum para os partidos encarregados de salvaguardar seus interesses. A propaganda é tão necessária à democracia como a repressão à ditadura. Só isto explica que sejam os partidos mais conservadores - aqueles que defendem os interesses de uma ínfima minoria da população -, que conseguem transformar-se quantitativamente em partidos de massas e que a base social de apoio de seus candidatos, pelo menos na América Latina, sejam os setores sociais mais pobres da periferia das cidades e do campo. Estes mecanismos para fabricar o consenso não são usados somente durante as campanhas eleitorais. Começam muito antes, influindo na vida cotidiana das pessoas, através da família, da educação, dos meios recreativos e culturais. Comprovou-se que a mais eficaz e duradoura "doutrinação" política é aquela que se realiza fora do campo e da linguagem política. Ora, se estes mecanismos lhe são ineficazes - como tem ocorrido em alguns momentos históricos - a burguesia não tem o menor escrúpulo de recorrer a métodos autoritários, fascistas, como os que já conhecemos no Chile.
O CONSUMISMO: OUTRA FORMA DE DOMESTICAÇÃO Outro elemento que favorece a governabilidade é o consumismo. As pessoas não se contentam em viver de acordo com seus rendimentos, mas antes vivem endividadas, e, portanto, necessitam manter um trabalho estável - cada vez mais escasso - para poderem saldar seus compromissos econômicos. O endividamento maciço não só serve para manter ou ampliar o mercado interno, mas atua também como um dispositivo de integração social. É necessário assegurar o posto de trabalho e ter méritos que permitam conseguir a ascensão profissional para obter novas oportunidades de consumo: conseguir casa própria, automóvel, o mais recente equipamento de áudio, o último modelo de televisor. Penso que é importante ter presente que o fenômeno do consumo de massas não se produz espontaneamente, nem é algo inerente à natureza humana. Diversos estudos revelam que os trabalhadores estadunidenses de fins do século passado se conformavam em receber um salário que lhes permitisse viver e ter alguns pequenos luxos básicos: preferiam ter mais tempo para o lazer a receitas adicionais como consequência de uma jornada de trabalho maior. Recordemos que o comportamento do norte-americano médio era muito influenciado pela ética protestante do trabalho, cujas pedras angulares eram a moderação e o sentido da poupança. Como, então, em tal situação, surgiu o consumismo? Foi a comunidade empresarial norte-americana que - nos anos 20 - se propôs mudar radicalmente a psicologia que havia construído a nação. Esta enfrentava uma situação de crise que provocava uma drástica queda das vendas. Era, então, necessário atacá-la, alterando a psicologia do povo norte-americano, motivando-o a consumir cada vez mais produtos. Lançou-se assim uma grande cruzada para converter os trabalhadores americanos numa massa de consumidores. Era preciso passar da cultura do produtor à cultura do consumidor e, para isso, transformar o que antes era um luxo para os setores de maiores rendimentos numa necessidade para os grupos de menores rendimentos. Foi nesse momento que surgiu também a compra a prestações. Em fins dos anos vinte, 60% dos rádios, dos automóveis e dos móveis vendidos nos Estados Unidos foram adquiridos sob a forma de venda a crédito. A nível das grandes massas conseguiu-se com êxito converter o supérfluo em necessidade; ao fazê-lo e promover a compra a prestações criou-se um novo mecanismo de domesticação.
UMA SOCIEDADE FRAGMENTADA Por último, o neoliberalismo consegue a governabilidade mediante uma estratégia de máxima fragmentação da sociedade. Uma sociedade dividida, na qual diferentes grupos minoritários não conseguem constituir-se numa maioria capaz de questionar o sistema vigente, é a melhor fórmula para que este se reproduza sem problemas. E não só se aplica esta estratégia aos trabalhadores - tratando de dividi-los, diferenciando-os e separando-os em distintas categorias e formas de remuneração -, mas a toda a sociedade. O que se persegue é construir ou fabricar grupos sociais isolados uns dos outros. E para consegui-lo, busca-se expressamente que estes grupos lutem só por objetivos exclusivos e parciais, que não suscitem adesão de outros grupos, tratando de convencê-los de que não existem objetivos comuns. A prédica sobre a morte das ideologias e o desaparecimento das utopias sociais é parte fundamental desta estratégia. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se tende a estimular práticas de "guerra" entre os distintos grupos e se fomenta a cultura do naufrágio, do "salve-se quem puder", que descarta qualquer tipo de solução coletiva, trata-se de impedir que se criem espaços de encontro onde se projetem objetivos que possam ser compartilhados por outros grupos, dando margem a potenciais acordos e alianças. Do que se trata é de impedir que estas minorias assumam lutas coletivas. A sociedade fragmentada implica em uma maioria - e às vezes um povo inteiro - que perdeu o rumo de sua própria causa nacional. Trata-se de uma estratégia global do poder dominante, que busca fragmentar a sociedade e impossibilitar, de um modo absoluto, a construção de um conceito de maioria que possa questionar o sistema.
Fonte: V Informativo REDE de Cristãos 06/Out/2000 |