Artigo: Gustavo Ioschpe
Falência da educação brasileira

"Apenas 26% da população brasileira de 15 a 64 anos
é plenamente alfabetizada. Deixe-me repetir: três
quartos da nossa população não seriam capazes
de ler e compreender um texto como este. Na
matemática, a situação é igualmente desoladora:
só 23% conseguem resolver um problema
matemático que envolva mais de uma operação"

 

 

O sujeito que apelidou o Brasil de "o país do futuro" se suicidou. Não é uma condenação, mas não deixa de ser um indício. Se Stefan Zweig estivesse vivo hoje, provavelmente se mataria de novo ao notar quão distante da realização sua profecia se encontra, mais de sessenta anos depois. Nosso futuro está penhorado porque não cuidamos do patrimônio mais importante que um país tem: sua gente. Se dependermos da qualificação dela para avançar, tudo leva a crer que continuaremos vendo os países desenvolvidos de longe e que a nossa geração, assim como a anterior viu o Brasil ser ultrapassado pelos Tigres Asiáticos, testemunhará a passagem da China, Índia e outros países menores. Enquanto os países de ponta chegam perto da clonagem humana, nós ainda não conseguimos alfabetizar nossas crianças.

Não é exagero, infelizmente. O último levantamento do Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (Inaf), do Instituto Paulo Montenegro, mostrou que apenas 26% da população brasileira de 15 a 64 anos é plenamente alfabetizada. Deixe-me repetir: três quartos da nossa população não seriam capazes de ler e compreender um texto como este. Na outra grande área do conhecimento, a matemática, a situação é igualmente desoladora: só 23%, segundo o mesmo Inaf, conseguem resolver um problema matemático que envolva mais de uma operação, e apenas esse mesmo grupo tem capacidade para entender gráficos e tabelas.

Esses indicadores são o produto final de um sistema educacional que apresenta deficiências, de modo geral, em todas as etapas do ensino, em todo o país (ainda que as tradicionais diferenças regionais também se manifestem na área educacional), e tanto nas escolas públicas como nas particulares. É um quadro que não pode ser creditado ao nosso subdesenvolvimento, pois países muito mais pobres tiveram (Coréia do Sul) e têm atualmente (China) desempenhos muito melhores que os nossos. Na área da educação, especialmente de ensino básico, nossos pares são os países falidos da África Subsaariana.

O exemplo mais claro dessa falência é também o mais preocupante, por estar na origem de todo o sistema: nosso índice de repetência nos primeiros anos. Segundo os dados mais recentes da Unesco, quase 32% de nossos alunos da 1ª série do ensino fundamental são repetentes. Na nossa frente, apenas as seguintes potências: Gabão, Guiné, Nepal, Ruanda, Madagáscar, Laos e São Tomé e Príncipe. A taxa da Argentina é de 10%; a da China e a da Rússia, de 1%; a da Índia, de 3,6%; e a dos países industrializados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é praticamente zero. Na 2ª série, temos mais 20% de repetentes. É possível, portanto, que metade dos alunos que adentram nossas escolas tenha repetido uma série já no segundo ano de ensino. Isso não é apenas preocupante pelo efeito que a repetência tem na auto-estima dos alunos nem pelo custo bilionário gerado por esses alunos a mais. O que mais inquieta é: imagine a qualidade de um sistema de ensino que reprova a metade de seus alunos justamente na fase em que se transmite o conhecimento mais básico, ler e escrever; que torna eliminatório um período que é meramente um rito de passagem nos outros países. Se não conseguimos alfabetizar, conseguiremos ensinar matemática, química, geografia? Conseguiremos ensinar nosso aluno a pensar? Conseguiremos torná-lo um cidadão consciente? Claro que não. Não conseguimos nem mantê-lo na escola até o seu término. A má qualidade perpassa todo o sistema.

O Saeb (agora Aneb), teste bienal do MEC que mede a qualidade da educação da 4ª, 8ª e 11ª séries, mostra não apenas a situação desesperadora de nosso ensino – na 4ª série, por exemplo, 55% do alunado estava em situação crítica ou muito crítica na área de leitura e só 5% tinham desempenho adequado – mas o que é pior: desde a primeira edição, em 1995, os resultados médios só caem, tanto em português quanto em matemática (afora uma pequena subida em 2003, mas dentro da margem de erro).

O resultado é um aluno que sai do ciclo inicial sem a menor condição de progredir na vida escolar. Mesmo que entenda aquilo que lhe for ensinado, não terá domínio suficiente da linguagem para exprimi-lo em uma prova. Assim, o retrato típico do nosso aluno é alguém que vai repetindo o ano, progredindo aos trancos e barrancos. Aos 14 anos de idade, por exemplo, praticamente dois terços dos alunos estão defasados, cursando uma série destinada a pessoas de menor idade.

Aqueles que chegam ao ensino médio (o antigo 2º grau) são poucos. Apesar da peneira do sistema – temos 5,7 milhões de alunos na 1ª série do ensino fundamental e só 2,4 milhões na última série do ensino médio –, mesmo os que ficam têm desempenho muito fraco.

Em sua última edição, o teste Pisa, da OCDE, testou jovens de 15 anos de quarenta países. O Brasil ficou em posição de destaque, ainda que não pelos motivos desejados: amargamos o último lugar em matemática, o penúltimo em ciências e o 37º em leitura.

Com essa qualidade sofrível, a educação brasileira deixa de ser o magnífico investimento que ela é em quase todo o mundo em todas as épocas e passa a ser um fardo para o aluno. Vale mais a pena ir trabalhar do que gastar horas e anos em aulas nas quais se aprende quase nada. O resultado é inescapável: abandono.

Aos poucos bravos que ainda terminam o ensino básico, apresenta-se a derradeira armadilha: aqueles que não têm dinheiro não conseguem entrar nas universidades privadas por falta de recursos, apesar da ociosidade de vagas dessas instituições. Tampouco conseguem penetrar nos cursos concorridos e de maior prestígio no mercado de trabalho das universidades estatais, porque a quantidade risível de vagas oferecidas nessas instituições acaba sendo preenchida por quem possui dinheiro suficiente para arcar com os melhores colégios e cursinhos. O pobre fica de fora e o rico estuda de graça, custeado pelos impostos que recaem desproporcionalmente sobre aqueles de baixa renda. Assim se perpetuam as nossas desigualdades.

Todo o acúmulo de erros e descasos da nossa educação culmina em um sistema de ensino superior raquítico, talhado para muito poucos. Enquanto nossa taxa de matrícula nesse nível patina em 20%, ela bate na casa dos 90% em países como Coréia e Finlândia, está acima dos 60% em vários países europeus e mesmo entre os nossos vizinhos já se encontra algumas ordens de grandeza mais adiante: 61% na Argentina, 43% no Chile, 39% na Venezuela, 32% no Peru!

O círculo se fecha: nossa taxa de analfabetismo funcional é semelhante à taxa de matrícula universitária dos países desenvolvidos. Temos de iletrados aquilo que outros países estão formando em bacharéis. Como escreveu Claudio de Moura Castro com a acuidade de sempre, precisamos de uma crise. Estamos nela até o pescoço, ainda que não nos demos conta.

Neste espaço, nos próximos meses me proponho a explicar:

1) como chegamos a esse estágio falimentar na educação;

2) por que colocar seu filho em uma escola particular não resolve o problema;

3) por que a maioria dos fatores usualmente apontados como grandes responsáveis por nossas deficiências não passa de mitos;

4) que impacto a crise educacional tem sobre as possibilidades de desenvolvimento do país e o que pode ser feito, concretamente, para que possamos resolver esse quadro lastimável.

Fonte: revista cerVeja