GOVERNO DE SP RECRIA DOPS E MONITORA ATIVISTAS
16 de Janeiro de 2002

 

Depois que o DOPS foi desativado pelo governador Franco Montoro, em 1983, a Polícia de São Paulo ficou sem uma agência de inteligência. Apenas no ano de 2000, na gestão Mário Covas, o governo do estado conseguiu recriar o DOPS sem comprar o peso político dessa iniciativa. Disfarçado de grupo de investigação de "crimes de intolerância", o novo DOPS, chama-se GRADI, Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância e já está investigando e monitorando o movimento "anti-globalização".

 

Um novo DOPS?

Desde que o DOPS foi desativado no início do governo Montoro, em 1983, a polícia estadual carecia de um serviço de inteligência para recolher "informações estratégicas". No entanto, recriar um serviço de inteligência era uma medida extremamente controversa e impopular, porque seria vista, sem dúvida, como a "recriação do DOPS", a temida agência de inteligência da polícia durante os governos militares, acusada de intimidação, sequestros, prática de tortura e assassinatos. Foi preciso pelo menos 17 anos e o arrefecimento do ímpeto democratizante da abertura para que o governo Mário Covas conseguisse recriar o DOPS de forma discreta, sem alarde, sob o manto insuspeito de um grupo pró-direitos humanos.

No dia 9 de março de 2000, o secretário de segurança pública Marco Petreluzzi anunciou oficialmente a criação do GRADI, o Grupo de Repressão e Análise dos Delitos de Intolerância, um órgão de inteligência dedicado exclusivamente ao recolhimento de informações sobre "crimes de intolerância", um conceito amplo que deveria incluir todos os atos criminosos "motivados pelo posicionamento intransigente e divergente de pessoa ou grupo em relação a outra pessoa ou grupo caracterizado por convicções ideológicas, religiosas, raciais, culturais, étnicas e esportivas, visando à exclusão social". Com essa genial manobra, o governo Covas conseguiu que a criação de uma agência de inteligência, ao invés de ser recebida com duras críticas pelas entidades de direitos civis, fosse saudada e aplaudida por grupos de defesa dos direitos humanos, dos homossexuais e dos negros. A feliz data para a criação do GRADI não parece ter sido fortuita. Ela aconteceu poucas semanas depois que o adestrador de cães Edson Neri foi estupidamente assassinado por skinheads na Praça da República.

Concebida oficialmente para cuidar de grupos fascistas, neonazistas, homofóbicos e preconceituosos em geral, a própria resolução da secretaria de segurança que criou o grupo já abre as frestas para uma atuação "mais ampla": entre os grupos que devem ser alvo de investigação estão os "'punks'", movimento de jovens politizados ANTI-racistas, lado a lado com "'carecas', 'skinheads', 'white power' e neonazistas". Entre os delitos que devem ser notificados ao grupo, estão as pichações, de qualquer tipo, independente do conteúdo ou autoria. No site oficial do GRADI (
http://www.seguranca.sp.gov.br/gradi/default.asp) descobre-se também que entre as atividades do grupo está o acompanhamento de eventos que possam atrapalhar a "ordem pública", tais como espetáculos musicais, manifestações populares e competições desportivas. O que isso teria a ver com a intolerância? Outro indício de que as atividades do GRADI poderiam ir além da fachada "pró-direitos humanos" é a indicação do tenente-coronel Silvio Roberto Villar Dias como um dos quatro coordenadores do grupo. Em 1991, quando ainda era capitão do Batalhão de Choque da Polícia Militar, Silvio Dias participou da repressão à rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção, na operação que ficou depois conhecida como o "Massacre do Carandiru". Recentemente, parece que as atividades "expandidas" do GRADI foram assumidas publicamente. Pôde-se ver, nos últimos meses, pela grande imprensa, agentes do GRADI desbaratando um QG do PCC (organização criminosa) e "estourando" o cativeiro de uma empresária que fora sequestrada. Finalmente, o último indício de que o GRADI tinha ambições além das declaradas, desde o início, foi a estranha declaração do próprio secretário de segurança pública Marco Petrelluzzi para a Folha de São Paulo (10/03/2000) dizendo que lhe parecia que o número de casos de intolerância no estado era "pouco representativo". Se esse tipo de crime parecia-lhe pouco significativo, porque foi criado um grupo especial tão bem estruturado para combatê-lo?

O GRADI foi formado por 12 agentes sob ordens de quatro coordenadores, dois da polícia civil, dois da polícia militar. O grupo está diretamente subordinado ao secretário de segurança pública e sua atividade cotidiana consiste em recolher informações que são repassadas pelas delegacias e recolhidas da impressa e da internet. Em poucos meses, o GRADI já alardeava ter fichado mais de 800 pessoas em seus "álbuns digitais de crimes contra intolerância". Não eram apenas criminosos condenados, mas também aqueles que o GRADI considera "suspeitos", todos agrupados em pastas e subpastas...



GRADI e o movimento anti-capitalista

Assim que foi criado, o GRADI começou a monitorar grupos e indivíduos ligados ao movimento anti-capitalista e ao chamado "movimento anti-globalização". Em maio de 2000, com apenas dois meses de existência, agentes do GRADI já haviam abordado jovens presos durante o primeiro de maio (dia do trabalhador) para que se tornassem informantes. Alguns meses depois, pelo menos quatro outros ativistas que participavam de manifestações de esquerda foram abordados nas suas casas por policiais à paisana, novamente buscando informantes. Em um caso, os agentes chegaram a fazer ameaças, segundo depoimento do ativista ao Centro de Mídia Independente. Em outros casos, além de ameaças, houve roubo de documentos e apreensão de correspondência pessoal. Tudo isso feito sem mandato judicial, por policiais à paisana. Segundo outro ativista, os agentes que o abordaram em agosto do ano passado, disseram saber da preparação dos protestos contra o FMI e o Banco Mundial que ocorreriam em 26 de setembro e que estariam de olho. De fato, nesse dia, esses mesmos agentes estavam presentes no protesto, à paisana e com câmeras de vídeo filmando o rosto dos manifestantes.

Já nesse ano, em abril, grupos anti-capitalistas de São Paulo prepararam um grande protesto na Avenida Paulista contra a ALCA, a Área de Livre Comércio das Américas. O protesto que contou com aproximadamente duas mil pessoas foi marcado por forte repressão policial que resultou em mais de cem feridos e 69 presos (10 indiciados). Os indiciados, muitos dos quais tinham passado por tortura na delegacia, foram levados a uma sala onde agentes do GRADI tiram-lhe fotos com plaquetas para a composição de um "álbum dos crimes de intolerância". Intolerância contra a ALCA, talvez... O advogado dos manifestantes protestou contra essa medida ilegal, mas enquanto falava com o delegado responsável, as fotos tinham sido tiradas e os agentes desaparecido. Outros dois ativistas, presos meses antes, relatam que também tiveram fotos tiradas para compor um "álbum de skinheads" depois do que, foram dispensados, sem que lhes fosse apresentado queixa.

Um último episódio mostra como a polícia paulista tem utilizado esse grupo declaradamente dedicado aos direitos humanos para espionar e monitorar os movimentos sociais. No último dia 18 de novembro, grupos de jovens anti-capitalistas prepararam um show de hardcore, no bairro do Jabaquara, beneficente ao movimento dos sem-teto. Já no final da apresentação, um homem e uma mulher apareceram no show com um câmera digital e tiraram diversas fotos do rosto de pessoas do público (possivelmente para compor o tal álbum dos "crimes de intolerância"). Alguns dos jovens abordaram o homem que tirava as fotos e ele mostrou uma identificação da polícia civil, sacou uma pistola, apontou para todos e deu dois tiros para o alto, antes de fugir. Esse mesmo casal tinha aparecido horas antes no local da apresentação dizendo-se membros da comunidade judaica que sentia-se ofendida com o cartaz de convocação do show que criticava a política externa de Israel contra os palestinos.



Jovens anti-capitalistas "neonazistas"?

Esses fatos e vários outros dão indícios de que há uma tentativa deliberada do GRADI de classificar os jovens anti-capitalistas, de esquerda, de "neonazistas". Não podemos saber se essa distorção absurda serve simplesmente de pretexto para manter esses grupos de jovens sob a alçada investigativa do GRADI ou servem antes para difamar o movimento anti-capitalista.

Muitos dos ativistas do movimento que são também punks são o alvo predileto da confusão deliberada da polícia e do GRADI. Os punks são na maioria anarquistas e são totalmente contrários a qualquer tipo de opressão e discriminação defendendo uma sociedade com igualdade e respeito. No entanto, no site do GRADI, eles são postos como alvo de investigação, lado a lado com grupos realmente discriminatórios e intolerantes como os skinheads. Nada indica que isso seja apenas uma desinformação grosseira desse órgão de "inteligência". Em entrevistas à grande imprensa, os coordenadores do GRADI parecem saber claramente a diferença entre punks e skinheads, anarquistas de esquerda e fascistas e neonazistas de extrema-direita. Segundo o delegado Heleno Prado, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo (10/03/2000), "o grande rival dos skinheads são os anarco-punks". Seu colega, o major Rafael Pereira, que monitorou uma manifestação de punks CONTRA a discriminação, disse ao mesmo Estado de São Paulo (08/09/2000) que os punks, por sua ideologia contra a discrimação, são inimigos dos skinheads. No entanto, os agentes do GRADI e a polícia parecem repetidamente tentar confundir as coisas junto à opinão pública. Num outro protesto contra a ALCA, acontecido no dia 7 de abril, no centro velho da cidade, a polícia reprimiu violentamente a manifestação alegando que os jovens eram neonazistas e se dirigiam para a Praça da República para espancar gays e nordestinos. Os jovens, que são todos anti-racistas e, alguns deles, ativistas do movimento gay, foram espancados covardemente por fazer uma simples passeata. Contra a ALCA. Um deles teve uma fratura na mandíbula e já sofreu duas operações.

 

Fonte: Centro de Mídia Independente - 13 de Dezembro de 2001.