GRITO DOS EXCLUÍDOS DA AMÉRICA LATINA E DO CARIBE

Frei Betto

 

A 12 de outubro, o Grito dos Excluídos da América Latina e do Caribe mobilizou milhares de pessoas no Continente, culminando com o ato em Nova Iorque, junto à sede da ONU, com a presença do prêmio Nobel da Paz Adolfo Perez Esquivel.

Do fundo de nossos corações, nós, os pobres da América Latina e do Caribe, excluídos da sociedade neoliberal, elevamos as nossas vozes para expressar perplexidade frente à atual conjuntura internacional, marcada pela desigualdade e pela injustiça.

Somos todos passageiros da mesma nave espacial chamada planeta Terra. No entanto, como nas caravelas dos colonizadores e nos aviões transatlânticos, viajamos em condições desiguais. Uma minoria usufrui, na primeira classe, de tecnologia de ponta, como a Internet, de alimentação saudável, de medicina sofisticada e de acesso à cultura. A maioria ­ 85% da população mundial ­ amontoa-se em porões insalubres, ameaçada pela fome, pelas doenças e pela violência.

Nosso grito ergue-se contra a globalização que, ao favorecer os poucos países metropolitanos, em detrimento das nações pobres, revela o seu caráter de verdadeira globocolonização. O PIB mundial, calculado hoje em US$ 25 trilhões, é o retrato da brutal acumulação da riqueza em mãos de poucos: os países do G-7 (EUA, Canadá, Inglaterra, França, Itália, Alemanha e Japão) detêm US$ 18 trilhões. Os US$ 7 trilhões que restam devem ser repartidos entre mais de 240 países!

Clama aos céus constatar que apenas três cidadãos norte-americanos ­ Bill Gates, Paul Allen e Warren Buffett ­ possuem, juntos, uma fortuna superior ao PIB de 42 nações pobres, nas quais vivem 600 milhões de habitantes!

Hoje, na América Latina e no Caribe, há 224 milhões de pobres e 90 milhões de miseráveis. São 192 milhões de crianças, das quais a morte atinge, a cada ano, quase 500 mil, afetadas por doenças preveníveis. Cerca de 14 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade sofrem deficiência de vitamina A. Cerca de 20 milhões de crianças menores de 15 anos de idade trabalham na América Latina e no Caribe. Muitas abandonam a escola para ajudar no orçamento familiar, enquanto outras assumem riscos de vida em suas atividades profissionais.

Quase 2 milhões de latino-americanos e caribenhos estão contaminados pelo vírus HIV. Nas escolas de ensino fundamental, a taxa média de repetência é de 30%, sem contar que amplas camadas da população ainda são analfabetas. Essa situação agrava-se pelo analfabetismo virtual, por não saberem lidar com os novos equipamentos eletrônicos.

Nosso grito é de protesto contra a economia neoliberal que, monitorada pelo FMI e pelo Banco Mundial, reduz a democracia ao mercado, a cidadania ao consumismo, e viola a soberania de nossos Estados nacionais através da privatização de nossas empresas estatais e públicas. Em 1999, o desemprego elevou-se a 8,7% em nosso Continente, a taxa mais alta da década, enquanto o salário real na indústria caiu, segundo a OIT, 0,9% no primeiro semestre de 1999, frente a igual período no ano anterior.

Globaliza-se a pobreza e não o progresso; a dependência e não a independência; a competitividade e não a solidariedade. Enquanto isso, as nações ricas investem em tropas e armas, anualmente, US$ 800 bilhões!

Nosso grito interpela: se as nações ricas querem a paz, por que não suprimem seus recursos bélicos e cancelam as exportações de armas para o Terceiro Mundo? Se querem o fim das drogas, por que não erradicam os paraísos fiscais e proíbem que éter e acetona sejam exportados dos EUA para a Colômbia?

Nosso grito quer fazer ver que a América Latina não tinha dívidas após a Segunda Guerra Mundial. Hoje, ela deve quase 1 trilhão de dólares. Por habitante, é a mais alta dívida externa do mundo. E em nenhum outra parte do mundo há tanta diferença entre os mais ricos e os mais pobres como em nosso Continente.

Nosso grito denuncia a mentira de que o mercado neoliberal é igual para todos. Quantas empresas e bancos do Primeiro Mundo há em nossos países? E quantas empresas e bancos de nossos países há no Primeiro Mundo? Para citar um exemplo, o Brasil, com 8,5 milhões de quilômetros quadrados e 167 milhões de habitantes, exportou, em 1998, cerca de US$ 51 bilhões. A Holanda, com 41,5 mil quilômetros quadrados e 15,7 milhões de habitantes, exportou US$ 199 bilhões no mesmo ano.

Gritamos para denunciar: quebram-se as barreiras comerciais de nossas nações e erguem-se verdadeiras muralhas protecionistas nos países ricos, onde é cada vez mais difícil a entrada de produtos provenientes de nossas fontes produtoras. Impõem-nos comprar o que produzem, mas se recusam a consumir o que temos a oferecer. Nos países da OCDE, o clube dos mais ricos, o imposto alfandegário médio aplicado às exportações de manufaturas dos países subdesenvolvidos é quatro vezes maior que o aplicado aos países membros do clube. Nós, do Sul, somos vítimas do protecionismo seletivo imposto pelo Norte.

Gritamos por não suportar a asfixia dos exorbitantes preços que devemos pagar pelos produtos manufaturados, enquanto os produtos básicos produzidos por nossos países, como o açúcar, o cacau, o café e outros similares têm, hoje, um poder aquisitivo equivalente a 20% do que tinham em 1960, e mal pagam os custos de produção.

Nossos países são vítimas do capital especulativo; do colonialismo cultural dos enlatados televisivos; da intervenção militar sob pretexto de combate ao narcotráfico. Nunca tivemos, entre nós, tantos famintos e desempregados. Em nossas ruas, crianças e mendigos disputam, como animais vorazes, as latas de lixo.

Gritamos indignados contra a prepotência do FMI que, de seus escritórios em Washington, impõe-nos políticas de ajustes fiscais, sem levar em conta a variedade de nações e a especificidade de cada país, cortando investimentos sociais e multiplicando a miséria e a pobreza. E quem assume a responsabilidade quando tais ajustes produzem o caos e desestabilizam governos, como ocorreu no Equador?

Nosso grito soma-se ao de Gaia, a Terra estuprada pela ganância de lucro, com graves ameaças ao meio ambiente e ao equilíbrio ecológico. São as nações ricas que mais poluem a atmosfera e, em nossos países, investem em empreendimentos que contaminam os nossos rios, os nossos mares, e derrubam as nossas florestas, exterminando nossas fauna e flora. Basta dizer que os EUA consomem, por ano, 8,1 toneladas de petróleo por habitante, enquanto nossos países consomem a média de 0,8 de tonelada por habitante.

 

Esperança no Terceiro Milênio

Nosso grito é também de esperança, forjada em nossas lutas democráticas e populares. Exigimos a demarcação e proteção das áreas indígenas; a mudança das políticas econômicas excludentes e dependentes; a reforma agrária; o combate ao desemprego; o cancelamento de nossas dívidas externas, dentro do espírito do ano Jubilar acenado pelo papa João Paulo II; o acesso de toda à população aos três direitos fundamentais: alimentação, saúde e educação.

Nosso grito expressa o anseio de que o FMI seja substituído por uma instituição reguladora das finanças internacionais efetivamente democrática, onde todas as nações tenham igual poder de voz e de voto, capaz de deter a avalanche especulativa, derrubar o protecionismo dos países ricos, e que não se sujeite a gerenciar os interesses dos credores biliardários.

Gritamos no anseio de que seja adotada a taxa Tobin, mas não de 0,1% sobre as transações financeiras especulativas, e sim de 1%, de modo a criar um fundo superior a US$ 1 trilhão, capaz de contribuir para o desenvolvimento sustentável de nossos países.

Seja ouvido o nosso clamor para que o governo dos EUA se retire da Colômbia imediatamente, evitando um novo Vietnã, com graves conseqüências para a população e a floresta amazônica. Exigimos ainda a pronta suspensão do bloqueio imposto a Cuba e o respeito à autodeterminação do povo cubano.

Nosso grito eleva-se a todos que são sensíveis à solidariedade e ousam abraçar a utopia de um mundo sem desigualdades, miséria e exclusão. O que queremos resume-se em três palavras, todas elas filhas da justiça: pão, prazer e paz.

Como o grito do salmista, cheguem aos ouvidos do Senhor da Justiça os nossos clamores, sob as bênçãos de Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira da América Latina, e de são Oscar Romero, que nos inspira na indignação e na coragem.


Fonte: IV Informativo REDE de Cristãos 09/Nov/2000