A GUERRA DO DESPREZO

por José Saramago

 

Num texto inédito, o escritor português saúda as comunidades zapatistas do México, e indaga: “Que será de nós, quando se perder a última dignidade do mundo?”

 

Ainda vai demorar um pouco para que os jornais registrem, mas parece claro que o quadro político internacional está evoluindo com rapidez, nas últimas semanas - e as mudanças não são em benefício dos neoliberais. A Ásia, palco principal do desenvolvimento capitalista nas duas últimas décadas, mergulhou numa crise ainda sem solução. Há alguns dias, caiu na Indonésia Suharto, o ditador que todos os presidentes norte-americanos, e todos os diretores do FMI, ajudaram a manter, por 30 anos. Também começou ontem, na Coréia do Sul, uma greve geral heróica, convocada em meio a uma onda de demissões brutal. O movimento é importante porque desafia a lógica perversa segundo a qual todos os sacrifícios devem ser impostos aos povos e às nações que entraram em crise, para que os capitais especulativos jamais saiam perdendo.

Na França, onde não há crise, o bom desempenho da economia tem servido para... ampliar direitos sociais. Sob pressão dos novos movimentos sociais, a Câmara dos Deputados aprovou em primeira votação, na semana passada, um projeto de lei que prevê ampla proteção contra a pobreza. Semanas atrás, o Parlamento já havia votado em definitivo a redução da jornada de trabalho para 35 horas semanais. As conquistas não reduzem a disposição dos trabalhadores. Os caminhoneiros estão em greve. Às vésperas da Copa do Mundo,  ameaçam parar os pilotos da Air France, que não concordam com o plano de “reestruturação” e demissões anunciado pela empresa na mesma semana em que revelou ter obtido lucros recordes. Mesmo ignorados pela imprensa brasileira, também os trabalhadores gregos entraram em greve geral hoje, para evitar a privatização das telecomunicações, geração de energia, portos, distribuição de água e de derivados de petróleo.

Estes pequenos avanços não invertem, é claro, uma conjuntura ainda amplamente favorável ao neoliberalismo. Eles valem por mostrar que há outras saídas, e gente disposta a procurá-las. Gente como os milhares de jovens que voltaram a se manifestar nos últimos dias, em todas as partes do mundo (inclusive em São Paulo), em defesa das comunidades indígenas zapatistas, ameaçadas pelo Exército e pelos grupos paramilitares mexicanos. Gente como o escritor português José Saramago, que fez questão de visitar Chiapas no final de março e escreveu em seguida o texto abaixo:


braço direito do índio Jerônimo não se levanta, porque perdeu completamente a articulação do ombro. A mão direita do índio Jerônimo é um toco sem dedos. Não se sabe o que há sob a atadura que lhe envolve o antebraço. O lado direito do tronco do índio Jerônimo mostra, de cima a baixo, uma cicatriz grande e funda que parece partir-lhe o corpo em dois, Os olhos do índio Jerônimo me perguntam que faço ali. O índio Jerônimo tem quatro anos e é um dos sobreviventes da matança de Acteal. Não suporto ver aquele braço, aquela mão, aquela cicatriz, aquele olhar, e me viro de costas para que não se note que vou chorar. Ante mim, velada pelas lágrimas que me queimam os olhos, está a fossa comum onde se encontram, em duas filas paralelas, os 45 mortos de Acteal. Não há lápides com os nomes.


Tiveram um nome enquanto viveram, agora são simplesmente mortos. O filho não saberia dizer onde estão os pais, os pais não saberiam dizer onde está o filho, o marido não sabe onde está a mulher, a mulher não sabe onde está o marido. Estes mortos são mortos da comunidade, não das famílias que a constituem. Sobre eles está se construindo uma casa. Amanhã, um dia, nas paredes que pouco a pouco vão sendo erguidas, veremos as imagens possíveis da matança, o enterro dos cadáveres, leremos por fim os nomes dos assassinados, algum retrato, se o tinham. Sob nossos pés estarão os mortos.

 

“A cumplicidade das diversas forças armadas mexicanas
com os paramilitares vinculados ao partido do governo,
por evidente, não precisa de demonstração”

 

Com dificuldade, descemos ao barranco onde as vítimas se esconderam, fugindo da agressão dos paramilitares que desciam a ladeira disparando. A igreja, simples barracão de tábuas brutas, sem adornos, nem sequer uma cruz tosca na fachada, onde os índios, havia três dias, estavam jejuando e rezando pela paz, mostra os sinais das balas. Dali escaparam os apavorados tzotziles de Acteal, acreditando encontrar refúgio mais abaixo, numa depressão do terreno escarpado. Não sabia que haviam entrado numa ratoeira. A horda dos paramilitares não tardou a descobrir aquele montão desforme de mulheres, homens e crianças, dezenas de corpos trêmulos, de rostos angustiados, de mãos erguidas implorando misericórdia (Ai de nós, o ato de apertar o gatilho de  uma arma tornou-se tão habitual em nossa espécie que até o cinema e a televisão nos dão lições gratuitas desta arte a qualquer hora do dia ou da noite). Sobre o mísero nó humano que se contorcia e gritava, os paramilitares descarregaram à vontade rajada após rajada, até que o silêncio da morte respondeu aos últimos disparos. Algumas crianças (talvez o índio Jerônimo) escaparam da matança por cair sob os corpos cravejados de balas. Apenas a 200 metros dali, 40 agentes da Segurança Pública, mandados por um general aposentado, ouviram o tiroteio e não deram um passo, não fizeram um gesto, mesmo sabendo o que iria ocorrer. Foi tal a indiferença das autoridades que nem sequer interromperam o tráfego na rodovia que passa por Acteal, a pouca distância do local do crime múltiplo. A cumplicidade das diversas forças armadas mexicanas com os paramilitares vinculados ao partido do governo, por evidente, não precisa de demonstração.

No município índio de Chenalhó, onde se encontra a aldeia de Acteal, mesclam-se histórias pessoais, familiares, políticas e sociais. Zapatistas e priistas têm amigos e parentes no outro lado, e às vezes acontecem que as afrontas recíprocas destróem os afetos. Os desalojados, varridos brutalmente de um lado para o outro, vêm da destruição das pequenas aldeias em que viviam, da falta de respeito pelos campos comunais, da impossibilidade de se reunir em assembléias e trabalhar sem medo, das humilhações infligidas pelas autoridades, da troca forçada de dirigentes por outros sem mandato nem eleição, da destruição dos símbolos comunitários, da proibição de reuniões, ou toleradas sob a vigilância de paramilitares protegidos pela polícia. Na guerra de desprezo que se está travando em Chiapas, os índios são tratados como animais incômodos. E a multinacional Nestlé aguarda com impaciência que o assunto se resolva: o café a está esperando...

Perto de Acteal, em Polhó, num cartaz à entrada do acampamento de desalojados zapatistas, se lêem estas palavras: “Que será de nós quando o último de vocês se tiver ido? E eu pergunto: “Que será de nós quando se perder a última dignidade do mundo”?

 
Fonte: Resenha da Internet - 27/Mai/1998