O NOVO MANIFESTO
Imagine-se um tratado de comércio que permite às empresas multinacionais e aos investidores estrangeiros acionar diretamente na justiça um governo para obter ganhos, vantagens, etc.., como compensação de toda a política ou ação governamental que tenha como resultado diminuir seus lucros. Não é intriga de um romance de ficção científica o futuro totalitário do capitalismo. Isto é apenas uma das cláusulas de um tratado que pode até ser assinado mas não reconhecido: o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI). O Diretor-Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Renato Ruggiero, descreveu a natureza deste Acordo: "Nós escrevemos a Constituição de uma economia mundial unificada". Algumas pessoas sabem que o AMI está em negociação desde 1995, dentro da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) , em Paris. Os 29 países membros da Organização são os países mais ricos do mundo, que querem primeiro entender se entre si antes de submeter o Acordo aos países em desenvolvimento do sistema de "pegar ou largar". O objetivo do Acordo é espalhar o programa de desregulamentação sistemático da OMC para alguns setores vitais ainda não preocupados com a localização e condições dos investimentos na indústria e serviços, nas transações em divisas e outros instrumentos financeiros como ações e obrigações com propriedades agrícolas e recursos naturais.
Embora durante as décadas precedentes o mundo tenha sido transtornado pela real explosão dos movimentos globais de capitais, os investimentos têm atraído menos atenção da opinião pública, da imprensa e do poder político que a atividade comercial. Porém, as empresas transnacionais e os grandes estabelecimentos financeiros têm estado especialmente atentos. Com paciência e agressividade, eles agiram de forma a que as regras gerais satisfizessem seus interesses particulares no assunto e assegurassem a extensão e a consolidação do seu poder sobre os Estados. |
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Se, como a maior parte dos tratados internacionais, o AMI estabelece uma série de direitos e obrigações, ele se diferencia fundamentalmente dos outros acordos: lá, os direitos são reservados unicamente às empresas e aos investidores estrangeiros, enquanto os governos assumem todas as obrigações. Além do mais há inovações sem precedentes, como, p.ex., uma vez que os Estados assinem o AMI eles estarão irrevogavelmente presos a ele durante vinte anos, Um dispositivo os proíbe de manifestar, sequer, o desejo de sair do Acordo antes de cinco anos. Depois disso, o Estado permanece atado durante os quinze anos restantes. O capítulo-chave do Tratado intitula-se "Direitos dos Investidores", onde figura o direito absoluto de investir, adquirir terras, recursos naturais, serviços de telecomunicações ou outros, divisas, etc. _ em condições de desregulamentação previstas pelo Acordo - sem nenhuma restrição. Os governos ficam na obrigação de garantir o "pleno gozo" destes investimentos. Numerosas cláusulas prevêem indenização aos investidores e empresas estrangeiras no caso de qualquer intervenção governamental suscetível de restringir sua capacidade de obtenção de lucros. Essa ação governamental poderia ser interpretada como de "efeito equivalente a uma "expropriação, mesmo que indireta". Assim, nos termos do Acordo "a perda de uma oportunidade de obtenção de lucros seria suficiente para justificar o direito à indenização do investidor". As regras relativas a "expropriação e indenização "são os dispositivos mais perigosos do AMI. Eles dão a cada empresa ou investidor estrangeiro o direito para contestar qualquer política ou ação governamental - de medidas fiscais a dispositivos relativos ao meio-ambiente, da legislação do trabalho as regras de proteção ao consumidor - entendida como ameaça potencial aos lucros. Assim, ainda que os Estados promovam alguns cortes nos programas sociais, é-lhes pedido que aprovem um programa mundial de ajuda às empresas transnacionais.
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Outro direito de indenização para os investidores: "proteção contra desassossego". Os governos são responsáveis pelo respeito dos investidores ao "desassossego civil", para não dizer "revolução, estado de emergência ou qualquer evento semelhante". Significa que eles têm a obrigação de proteger os investidores estrangeiros contra todas as perturbações que possam diminuir sua rentabilidade, como movimentos de protesto, boicotes ou greves. De como os governos encoragem isso, o AMI passa a restringir as liberdades sociais. Por outro lado, o AMI não prevê obrigação ou responsabilidade para os investidores estrangeiros. Os governos não podem tratar os investidores estrangeiros diferentemente dos nacionais. E de acordo com o projeto do Acordo é o impacto de uma política e não da intenção e sensação literal de textos de lei que devem ser levados em consideração. Assim, leis aparentemente neutras mas que podem ter um efeito discriminatório não intencional sobre o capital estrangeiro deverão ser ab-rogadas. Textos que fixam limites para o desenvolvimento das indústrias extrativas, como a mineração ou florestais, poderão ser denunciadas por seus efeitos discriminatórios, de acordo com a interpretação dos investidores estrangeiros que tentam ter acesso a estes recursos em detrimento dos investidores nacionais que já têm acesso a eles. Da mesma forma, política comumente praticadas de ajuda as pequenas empresas ou de tratamento preferencial em favor de certas categorias de investidores ou inversores, como alguns programas da União Européia a favor de regiões menos desenvolvidas, poderão ser atacadas. Ocorre o mesmo com os programas de redistribuição de terras para camponeses em países em desenvolvimento. Para ser admitido no NAFTA, modelo do AMI, o México deveria ter suprimido os dispositivos de sua Constituição relativos à reforma agrária, instituída depois da revolução de 1910, de forma a que os investidores americanos e canadenses pudessem comprar as terras reservadas aos nacionais. Resultado dos primeiros quatro anos de aplicação do NAFTA: a destruição maciça dos pequenos agricultores, enquanto as multinacionais do setor agroindustrial apropriaram-se de imensas extensões de terra.
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O AMI também proíbe as medidas tomadas por muitos países para orientar os investimentos no sentido do interesse público, exigindo, p.ex., a utilização da força de trabalho local ou de certas categorias ou de deficientes físicos. Da mesma forma, leis e normas sobre o meio-ambiente poderão ser combatidas. Se estiver submetido às exigências do AMI as medidas tomadas por vários Estados dos EUA que exigem que as embalagens em vidro ou em plástico contenham uma porcentagem mínima de produtos recicláveis, bem como tarifas preferenciais praticadas para os materiais feitos com estes produtos, ficarão prejudicadas. Pesa também grande ameaça sobre a legislação de certos países do Sul que visam promover um desenvolvimento econômico de caráter nacional, como, p.ex., exigindo dos investidores estrangeiros que se associem às empresas locais ou que providenciem o recrutamento e a formação de quadros nacionais. O Acordo incide, ainda, sobre a cláusula de nação mais favorecida, já que requer um tratamento igual entre todos os investidores estrangeiros: Será proibido, além do mais, aos governos, praticar discriminações para com os investidores estrangeiros, mesmo que estejam em jogo direitos humanos, direito ao trabalho ou outros similares. Fica interditado, igualmente, tratamento hoje praticado pela União Européia com suas antigas colônias da África, Caribe e Pacífico, de acordo com a Convenção de Lomé. Se o AMI já estivesse em vigor nos anos 80, Nelson Mandella continuaria na prisão, porque o Acordo proíbe o boicote ou restrição aos investimentos estrangeiros, como eles foram realizados pela oposição a Pretória, nos dias do apartheid, com exceção de haver motivos de "segurança fundamental?
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O texto contém uma disposição que impõe aos Estados abrir mão, sem condições, de submeter os litígios à arbitragem internacional, obrigação de que os Estados dispunham, de acordo com o privilégio baseado no direito de soberania. Estas ações ficam à disposição das empresas e investidores estrangeiros, mas não de cidadãos ou associações. O Acordo prevê a resolução de conflitos entre Estados pelas jurisdições internacionais, dentro do modelo da OMC. Procedimentos opacos, sem garantias judiciais. Nos termos do Acordo o porta-voz dos governos deve se ater a generalidades: "Não se preocupem, dizem eles, a rigor, não há nada de novo neste Acordo". "Trata-se somente de racionalizar algumas práticas já existentes". Mas o AMI, tal como um Drácula político, não pode viver à luz do dia. No Canadá, a revelação de sua existência provocou no mundo político uma tempestade maior que a do Tratado de Livre Comércio com os EUA, há dez anos. Nos EUA ele foi atacado vivamente pelo Congresso. |
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Um bolo com estricnina Curiosamente, aqueles que deveriam ser os mais mobilizáveis - os movimentos sindicais - representação na OCDE pelas confederações internacionais, limitam-se a propor, sem sucesso, adição ao AMI de uma "cláusula social", ao invés de colocar em xeque os fundamentos mesmo do Acordo. Uma posição denunciada pelas organizações de consumidores, associações de defesa dos direitos humanos, de proteção ao meio-ambiente, bem como também de um número crescente de sindicatos que julgam a proposta de Acordo semelhante à cobertura de glacê de um bolo com estricnina. Nenhum representante de governo nem desses milhões de empresários teve a intenção, sequer, de introduzir alguns dispositivos coercitivos no AMI. A tática consiste em prever numerosas exceções e reservas, revelando, assim, o tamanho da ameaça. Praticamente não está assegurada a prevalência de juízos de valor no Acordo, enquanto ele ateia fogo na nossa casa. Os governos francês e canadense uniram-se para obter "exceções culturais", considerando que os negociadores americanos acolhem os interesses de hollywood que, graças ao AMI, poderá deter total hegemonia, sem participação das grandes indústrias da cultura. |
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Publicado no Le Monde Diplomatique, de fevereiro de 1998. Diretor do Public Citizen`s Global Watch. |