O GAÚCHO E SUA (NOSSA) ORIGEM

Por Evaldo Muñoz Braz


Por volta de 1580, os cavalos abandonados na região do Prata em 1536 tinham se  multiplicado aos milhares. Por volta de 1600 não podem ser mais contados  em suas gigantescas manadas. Os Pampas do Rio Grande, Uruguai e Argentina estavam povoados de cavalos chimarrões (cimarrones/selvagens)  e o povo que vivia nessa região unida pela semelhança   ambiental se tornaria um povo cavaleiro.

A posterior introdução do gado, que por sua vez torna-se também abundante e chimarrão e também formando rebanhos que chegaram a atingir (somando  Rio Grande, Uruguai e Argentina)  40.000.000 de cabeças, sedimenta esta cultura. Agora haverá gado solto  e sem dono em abundância para ser caçado   com o laço por aqueles que não querem outra vida com  liberdade tão incomparável. O gado chimarrão é a base da alimentação e  origem de produtos que serão comercializados e/ou contrabandeados (na época uma rebeldia contra os  pesados impostos).

Mas na origem da formação do gaúcho deve ser lembrado, os índios  pampeanos (nossos charruas e minuanos) que logo se adaptaram magnificamente ao cavalo (por volta de 1607). A miscigenação do europeu com o índio, fundindo a cultura ibérica com a americana.  A escolha do abandono da civilização pelos  mozos  perdidos (homens que optaram pela vida no  pampa sem fim) sendo o primeiro registro em 1617, já com chiripá, poncho e bota de garrão de potro (tendo esta indumentária uma evolução gradual e natural  até por volta de 1865 (com a substituição do chiripá pela  bombacha), tendo se estabilizado relativamente até agora.
        
Índios, mozos perdidos, vagabundos  do campo (1642), changadores (1700) e gaudérios são seus antecessores e de origem e comportamento bem semelhantes. Em que momento começa  a existência  gaúcho?  É impossível passar a faca sobre este  variado mosaico e separar as partes que  em muitos momentos se sobrepõe.

A palavra  “gaúcho” entretanto só aparece em crônicas de viajantes   na América do Sul  por volta de  1770 ou um pouco antes. Demonstra uma nova adaptação ou melhor, culminação dos tipos anteriores.  Normalmente quando um padrão está determinado é porque sua existência é bem anterior. O gaúcho aparece simultaneamente (isto é importante frisar) no Rio Grande do Sul, Uruguai e  Argentina.

 

O viajante francês Dreys (em observações entre 1817 e1825 aqui no Rio Grande) assegura:

“Todos os exercícios de manejo e picaria dos mestres de equitação da Europa são familiares ao gaúcho, e alguns dos exercícios mais difíceis são mesmo entre eles divertimentos de crianças.”

       

 

Os hábitos dos antigos gaúchos, sejam alimentares, roupagem, aperos e arreios dos cavalos, forma de doma dos cavalos, forma de laçar ou bolear, maneira figurada de falar, palavras utilizadas e música, etc. passam a ser assimilados  pelas novas ondas de  colonização  que sofreu o continente de São Pedro do Rio Grande do Sul com os açorianos em 1752. A cultura de fora se rende a cultura local e adapta-se, transforma-se ou desaparece.

Neste período, muitos gaúchos são Vaqueanos (que conhecem a região como um mapa impresso em sua cabeça nos seus mais mínimos detalhes) e guiam viajantes e exércitos pelo pampa. Outros tocam  infindáveis tropas de gado por léguas sem fim, outros carreteiros transportam produtos cortando a região de todas as maneiras. Os antigos e primeiros gaúchos nômades (antes injustamente chamados de ladrões  no período do gado cimarrão, dizemos injustamente  pois se concordarmos com o epíteto, estaremos  assumindo o lado do mais forte, pois na realidade havia um enfrentamento de forças pela posse de um produto sem dono: o gado) agora trabalham em fazendas sazonalmente (são talhados para este trabalho pois são exímios laçadores, boleadores, carneadores e artesões de produtos de couro necessários a montaria, são pouco exigentes e parecem se divertir no trabalho mais duro)  e influenciam de forma espantosa os filhos dos colonos na campanha ou povoados por que passam. Os gaúchos influenciam o comportamento de toda região. Sessenta anos após a chegada dos açorianos, Saint-Hilaire  anota em seu diário que  seus descendentes  não querem outro modo de vida para, as vezes, contrariedade  dos pais. Todos querem ser como os gaúchos. Nota-se traços deste fato mesmo na rígida colônia alemã já em 1858, anotado por Avé-Lallemant (para Avé-Lallemant, esses alemães demonstram nos campo, traços de gaucharia, que se destaca no manejo do laço, condução da tropa e pelo modo de montar e destaca  alemães  aparecerem montados a cavalo, com elegantes ponchos listrados).

Quando o inglês Luccock  esteve no Rio grande em 1808 (quase 200 anos atrás!), a região está  no interior completamente acriollada (ou agauchada). Todos andam a cavalo na região, sejam índios, soldados, escravos, peões, estancieiros, comerciantes, viajantes ou crianças.

Logo todos serão  unicamente povo: o gaúcho.

 

Um documento impressionante  é o  escrito pelo  belga  A . Baguet em 1845 em Viagem ao Rio Grande do Sul. Fala de crianças  com poucos anos cavalgando sem sela a toda  velocidade, na forma como montam colocando o  pé descalço  no joelho do cavalo;  a provação dos ventos da pradaria; a lealdade nas guerras; o costume da hospitalidade mesmo entre os mais pobres; a confiança  humana nos vaqueanos; os costumes principais como o do mate (e suas propriedades) e churrasco os quais descreve em detalhes; a exibição dos arreios com prata mesmo dos vaqueanos mais simples (como o seu próprio guia); o impacto da imagem do pampa; a habilidade do gaúcho nas boleadeiras e  principalmente  no cavalo. Menciona à exaustão com preciosas descrições a habilidade do  gaúcho  com o cavalo, o qual considera  o melhor cavaleiro do mundo junto aos índios.

Vejamos algumas  observações de Dreys (1817-1825) sobre os rio-grandenses:

“Independente dessas armas comuns  aos militares, o rio-grandense traz consigo duas armas auxiliares peculiares, que somente os homens desta parte da América sabem manejar com habilidade: queremos falar do laço e das boleadeiras.”

“Tem o rio-grandense contraído uma espécie de aliança com o cavalo, em virtude da qual é feito auxiliar indispensável da vida do homem, o cooperador assíduo de quase todos os seus movimentos. O rio-grandense folga em percorrer suas imensas planícies a cavalo.(...) A predileção que manifesta por seu cavalo não se contenta a admiti-lo como companheiro  inseparável; ele se ocupa também em adorná-lo(...).”

“(...) as guerrilhas do Rio Grande empregadas contra o estrangeiro nessas guerras, adquiriram uma reputação de firmeza e de coragem que o inimigo não desconheceu. A coragem do rio-grandense é fria e perseverante(...).”

 

Fazendo um parêntesis, é bom lembrar que estes gaúchos (considerando além do Rio Grande, os gaúchos do Uruguai e Argentina) são a base utilizada na guerra em seus respectivos países, os  quais lhes devem seja a independência,  seja a manutenção das fronteiras (sem os gaúchos, basicamente rio-grandenses, Rosas, na Argentina,  não teria caído por exemplo). No Brasil o caso é exemplar. Quem manteve as fronteiras  ou lutou nas guerras foram deste estado. Pena que isto não seja lembrado nos livros de história.

Sobre a honra diria ainda Dreys:

“Sua palavra (dos rio-grandenses) é inviolável”.    

 

Vários comentaram sobre a hospitalidade do rio-grandense/gaúcho, entre os quais Arsène Isabelle (1833):

“A hospitalidade é ainda, entre a maioria, uma virtude que se pratica com generosidade.”

 

No seu comportamento  o gaúcho antigo e  o acriollado trazem   um respeito para quem os trata com respeito,  tem uma base ética, mesmo que rudimentar; são impetuosos; são peleadores quando necessário;  tem certa atração pela guerra desde que seja a cavalo (jamais à pé); atração pela montaria que se manifesta em enfeites muitos até de prata;  tradição na indumentária e principalmente na forma de arreiar os cavalos.   

A maneira de falar do gaúcho antigo chegou de forma impressionante até nossos dias. Mesmo nos maiores  centros urbanos do estado, dezenas de palavras  oriundas da lida campeira continuam sendo usadas   com significado paralelo ao original (apesar de  que a quase totalidade das pessoas que as utilizam desconheçam  esta origem).

Chegaram até nossos dias também, a música, os payadores, a poesia gaúcha (culta sim, mas derivada do canto  homens do campo do passado). Simões Lopes Neto no seu Cancioneiro Guasca, antologia da música popular gaúcha do passado nos mostra a atenção que os habitantes do interior tinham pelo gaúcho. Hoje ainda, muitas pessoas do interior, ligadas diretamente ou mesmo indiretamente ao campo, compõe  música  e fazem poesia, ou trovas  a maneira ou lembrando a vida do gaúcho. Centenas de músicos de qualidade compõe letras e músicas campeiras (nem sempre com apoio da mídia local). Festas que lembram  as habilidades do gaúcho (doma e laço principalmente) são  atração sempre que acontecem, mesmo nas zonas mais metropolitanas. Pesquisadores como Paixão Côrtes e Barbosa Lessa conseguiram recuperar muito  da dança gaúcha.

Chegou-nos também uma espécie de reminiscência da campanha e um sentimento de épico. Veneramos a planície.

A base do comportamento do gaúcho (seu ethos) de forma geral chegou até nós e nos influenciou, isto é um fato.  Pelo menos até 20 ou 30 anos atrás. Entretanto, a massificação proporcionada pela  televisão e globalização (além de um antigo preconceito local a influencia gaúcha) ameaçam  esta  antiga homogeneidade de povo. O “ser gaúcho”, ou seja, a manutenção de características mínimas que nos identifiquem, tais como gosto pela música nativa, pela literatura regional  ou manutenção do comportamental básico (combatividade era uma das características) passa a ser  visto  por intelectuais (rio-grandenses, pasmem!)  como “negativa” e atrasada. Estes intelectuais (com marcada visão etnocêntrica) não consideram que expressam seu modo urbano (ou globalizado?) de ver.   Contraditoriamente, estes mesmos intelectuais, entretanto concordam que deve ser respeitada as culturas regionais de outros locais.

No mundo inteiro, incluindo sobremaneira Europa e Estados Unidos, festas regionais reforçam suas certezas sobre suas origens, como comportar-se frente a adversidade e planejar o futuro. Saberem  quem são. Este é o sentido de conhecer-se o passado. Afinal “É tão grave esquecer-se no  passado como esquecer o passado. Nos dois casos desaparece a possibilidade de história.”

 

 

 

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