A RBS CONTRA A PLEBE

Por Jimmy Basnotte

Quem tiver lido apenas as matérias de Zero Hora e do Diário Gaúcho, ou visto a RBS-TV e a TVCom e ouvido a rádio Gaúcha e outras do grupo RBS a partir de domingo, 23/Abr/2000, passará por tolo. Se depender do ponto de vista da RBS ficará com a robusta convicção de que o grande acontecimento dos 500 anos de Brasil foi a incineração do relógio globeleza de Hans Donner em Porto Alegre. Não será, portanto, um tolo qualquer. Será um tolo histórico.    

A exaltação com o ataque aquilo que José Simão, na Folha de São Paulo, chama de "monstrumento", não ficou nada devendo à fúria da estudantada, punks, metaleiros e lumpens que se atiraram contra o totem global. A ira da RBS foi tamanha que subverteu a ordem de importância das coisas -- pecado mortal em jornalismo -- obscurecendo o resultado que assomou das "comemorações", uma das maiores roubadas em que se enfiaram o governo FHC, a baianidade feroz e a TV Globo.

As proporções do logro atingiram proporções burlescas na ZH de segunda-feira (24/04). Um dos grandes fatos do fim-de-semana foi a demissão do presidente da Funai, Carlos Frederico Marés. Ele rejeitou o cargo após levar bombas de gás na Bahia junto com os índios e saiu denunciando violações explícitas dos direitos humanos e flechando a vaidade de FHC, acusando-o de ser "refém das elites". Marés e sua demissão receberam dois parágrafos, uma foto de uma coluna e uma frase destacada abaixo, dentro de uma matéria de duas páginas sobre os festejos animados por bombas, balas de borracha, espancamento, arbítrio, colonialismo explícito e prisões. Sozinho, o holocausto do relógio ganhou quase uma página e meia e cinco fotos. E com direito à nova página na terça-feira!

Enquanto a manchete de capa de ZH de segunda-feira desconversava (ah, sim, roubo de carros), o Correio do Povo martelava o prego certo: "Fracassa festa dos 500 anos" mancheteou. E não estava sozinho, pelo contrário. "Presidente da Funai critica FHC e diz que festa fracassou", ensinou o Estado de S. Paulo, cuja simpatia pelo presidente não o impediu de fazer jornalismo. No domingo, o Estadão já dera o tom: "Confronto na festa dos 500 anos faz 141 presos" foi sua manchete de capa. No mesmo dia, a Folha de S. Paulo mancheteava "Conflito marca festa dos 500 anos", com uma foto de um índio molhado e estupefato diante de um soldado empunhando uma granada. Enquanto isso, a palpitante manchete da edição dominical de ZH falava em "novos empregos" gerados por grandes empresas... 

Escorada na sua trupe de "comunicadores", a RBS surtaria mesmo a partir de segunda com a destruição do monumento de metal, zinco e plástico. Uma posição diametralmente oposta a da Globo, mãe da criança, que, depois das primeiras depredações ao seu relógio em Brasília, decidiu fazer olho branco para as agressões. O legítimo direito de protestar e de se sentir prejudicada da RBS foi ofuscado por um superdimensionamento do ocorrrido. Para dar uma chance às pessoas de formarem uma opinião menos atrelada ao alarido midiático monopolista, oferecemos uma segunda versão. Uma fonte do Clube da Notícia acompanhou boa parte dos fatos e deu-nos informações que podem ajudar a desentortar alguns deles.

O primeiro se refere à suposta docilidade da Brigada Militar diante dos manifestantes. Durante toda a tarde de sábado, a BM, quase sempre, agiu com prudência e sabedoria, sem deixar de proteger o monumento. Primeiro, quando os grupos que protestavam, derrubaram uma cerca em torno do relógio, o batalhão de choque impediu a depredação. Depois, quando se afastou e o ataque reiniciou, a BM voltou, desta vez com a cavalaria. Não arredou pé do lugar das 16h até o anoitecer. Os cavalarianos souberam, inclusive, enfrentar algumas pedradas.     Nesta proposta de primeiro proteger a vida e depois a propriedade privada, só houve um senão. Por volta das 16h30, os cavalarianos jogaram-se em uma atabalhoada carga contra os provocadores, semeando pânico entre as pessoas que circulavam pela avenida Beira-Rio, incluindo famílias. A iniciativa de andar a galope, espalhando a multidão, custou bons desaforos aos cavalarianos. Três pais deixaram seus filhos em local seguro e, de dedo em riste, avançaram contra os PMs a cavalo. "O que estás pensando, botando em perigo a vida das crianças para proteger esta m... da RBS, rapaz?", acusou um deles. O PM balbuciou algo e preferiu recuar, enquanto outro pai o chamava de "idiota".

Após este rebuliço, houve certa calmaria. Os PMs, cerca de dez, colocaram-se em frente ao relógio e ali ficaram até o anoitecer, quando se retiraram. A RBS queria, parece, que um contingente de brigadianos ficasse eternamente vigiando o monumento, tão odiado quanto outros que também foram atacados pelo país a fora. Talvez trincheiras, acompanhadas pela designação perene de um destacamento, resolvessem. Ou, quem sabe, o uso de bombas de gás lacrimogênio, associado a balas de borracha, como perguntou o comunicador Lasier Martins? Em outras palavras, uma boa esfrega na plebe rude e ignorante, incapaz de apreciar os píncaros da arte donneriana globalizante e de respeitar a propriedade privada. Porque não um ataque maciço da BM para resolver as coisas, como naquela página inolvidável do governo Simon/Guazzelli, conhecida como batalha da praça da Matriz, onde morreu um brigadiano e 60 pessoas ficaram feridas? Como havia muito mais crianças nas imediações do monumento e o terreno é mais aberto, certamente se bateria aquele número com certa folga e com maior garbo, já que a cavalaria, de espadas em punho, é bem mais elegante do que a infantaria que perseguiu os sem terra pelo centro de Porto Alegre anos atrás.

Outra mitologia refere-se à reação da grande maioria das pessoas que se aglomeraram em torno do relógio. Aparentemente, sua postura não era, nem um pouco, de lastimar o ocorrido, como deu a entender a RBS. As divergências manifestavam-se esporadicamente. Como no caso do cidadão vestindo camiseta da Força Sindical. Ele sugeriu a um dos manifestantes que protestasse contra os salários dos professores estaduais. Em troca, foi chamado de "puxa-saco do Britto". Outro gritou um desaforo e foi chamado de "fascista" com a recomendação de que fosse "pegar um dicionário em casa para saber o significado da palavra".

O grupo teatral Oi Nóis Aqui Traveiz apareceu tocando uma marchinha e, quando seu porta-voz, do alto de suas pernas-de-pau, chamou o monumento e a festa dos 500 anos de "uma palhaçada" foi aplaudido. Houve palmas também quando criticou "a violência" da BM na repressão aos manifestantes. A cada pedaço de plástico ou latão que caía do relógio havia palmas e gritos de aprovação. Um grupo de meninas sorridentes posou para fotos dentro do mostrador arrancado, outro homem urinava na base do relógio e jovens, alguns estudantes de história, pegavam restos como suvenires. Meia dúzia de gatos pingados com bandeiras do PSTU, PC do B e do PT circulavam pelos arredores.

Punks e metaleiros queimaram uma guarita diante do monumento. No final, dezenas de jovens, homens e mulheres, correram e pularam em volta do relógio, ao lado da fogueira, batendo com a mão espalmada na boca como se fossem índios, um fecho simbólico e escrachado para uma festa idem. Que merecia menos furor e mais jornalismo. 

 

Fonte: Clube de Notícias, 28 de abril de 2000