SOBERANIA E GLIFOSATO: O BRASIL E A SOJA TRANSGÊNICA DA MONSANTO

A comunidade científica nacional adverte: as autoridades brasileiras estão coniventes com a multinacional que planeja monopolizar a venda e controlar o plantio de sementes transgênicas no País

 

Paula Beiguelman

(São Paulo - O FAROL)

 

Por volta de 1977, a Monsanto, com fábricas em muitos países além dos Estados Unidos, desenvolvia uma linha de atividades que abrangia produtos químicos diversos, incluindo químicos industriais, além de herbicidas (como o Roundup) e inseticidas. Complementarmente, adquirira a Farmer’s Hybrid Co., passando a integrar o rol das maiores firmas envolvidas na indústria de sementes.

A essa época, os carteis já estimulavam o aparecimento de uma nova orientação para a pesquisa agronômica.

Não se tratava mais de operar cautelosos e seguros cruzamentos visando, por exemplo, a obter variedades resistentes a certas doenças como os efetuados no Instituto Agronômico de Campinas (SP) pelo saudoso agrônomo pátrio Dr Alcides Carvalho, internacionalmente estimado pelo seu método e variedades de café obtidas.

Diversamente, alterando o rumo, assistia-se a uma intensa compra das indústrias de sementes pelas multinacionais agroquímicas. A idéia era direcionar a pesquisa para obter variedades em cuja cultura se empregassem determinados pesticidas -os produzidos pelas compradoras, tornadas também produtoras de sementes; e difundir o plantio dessas novas variedades sobre cujas sementes manteriam "direitos intelectuais" (patentes). Surgiam os pacotes.

O recente acoplamento entre o herbicida Roundup (para destruir as pragas) e uma soja biotecnologicamente dotada de resistência a esse herbicida (Roundup Ready ou RR), ambos produtos da Monsanto, é um deles.

Tornada a maior corporação transnacional do setor biotecnológico e uma das cinco maiores da agroquímica, a Monsanto, que tem sede em St. Louis, nos Estados Unidos, depois de difundir a soja RR nos Estados Unidos e, em seguida, na Argentina, voltou os olhos para o Brasil, o segundo produtor mundial do grão.

Aqui adquiriu a Agroceres, uma das únicas empresas brasileiras do setor de biotecnologia, e também a Monsoy, além de empresas na area de fármacos.

 

O alto preço a ser pago

Em 19 de julho de 1998, apresentava à Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, o pedido para cultivar e comercializar no Brasil a soja transgenicamente modificada.

A reação da comunidade científica foi imediata, encontrando a devida ressonância na reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em julho do ano passado.

Com efeito, ao contrário do que propalam o marketing e o serviço de relações públicas da corporação, o herbicida, que poderá ser usado a vontade, pois a planta é resistente a ele, acumula-se no solo e tem efeitos prejudiciais sobre o ecossistema.

Quanto à à saúde humana, na Califórnia, por exemplo, esse agroquímico é considerado a terceira causa mais freqüente de reações tóxicas. Além disso, o cultivo de plantas transgênicas em grandes extensões acarreta um aumento da uniformidade genética, e, portanto, o aguçamento da vulnerabilidade no caso de propagação de epidemias.

O plantio da soja transgênica resistente a um herbicida apresenta ainda outros perigos. E se genes modificados escaparem e no contato com ervas daninhas acabarem dando origem a ervas resistentes ao herbicida - superpragas?

Para os agrônomos e biólogos é claro (o Princípio da Precaução o recomenda) que a erradicação das ervas daninhas deve ser feita pelo efetivo manejo, rotação de culturas e herbicidas seletivos.

Mas há outro aspecto fundamental sob o ponto de vista econômico.

O cartel vende as sementes para auferir lucro, muito lucro. Ao comprá-las, o agricultor conta com as vantagens orquestradamente alardeadas pelo lobby e esquece o vínculo de dependência que estabelece com os reais donos das sementes.

Nos Estados Unidos, o agricultor assina um contrato que o proibe de utilizar as sementes produzidas pelo plantio. Para dar eficácia à proibição, é facultado à Monsanto vistoriar as propriedades nos anos seguintes à primeira safra, a fim de verificar se a área plantada é compatível com a quantidade de sementes adquiridas e certificar-se de que o agricultor não utilizou sementes provindas de sua própria colheita. Em suma, é exigida a compra de sementes para cada safra.

Respodendo à decepção dos agricultores que já estão considerando o sistema transgênico caro - e já se desfizeram do seu próprio cultivo convencional -,o cartel argumenta que as vantagens (pretensas) têm um preço! A empresa precisa de recursos para novas pesquisas! E, principalmente, é a dona das sementes.

À época da solicitação da Monsanto à CTNBio, em junho de 1998, o quadro internacional com respeito ao problema se alterava. A União Européia, que havia permitido a liberação dos alimentos transgênicos, passava a considerar que tal decisão fora precipitada, e exigia uma rotulagem identificadora desses produtos, para o consumidor mais facilmente poder rejeitá-los, pois essa era a sua vontade. O Japão também aderiu a essa posição.

Mas no Brasil, navegando contra a corrente e desprezando o Princípio da Precaução, a CTNBio, submissa à Monsanto, afirmava considerar-se convicta de que não havia risco ambientaL ou à saúde humana no plantio solicitado. E assim, em 24 de setembro de 1998, exarava um parece favorável à liberação da soja transgênica no País.

 

Jogo de conivência oficial

Simultaneamente, uma portaria da Secretaria Nacional de Vigilância, do Ministério da Saúde, autorizava o aumento do percentual de glifosato, o princípio ativo do herbicida Roundup, nesse agroquímico.

Dessa forma aumentava-se também o grau de vulnerabilidade da planta ao glifosato, provavelmente com o objetivo de estimular a demanda de uma semente dotada de resistência a ele, e apressando, assim, a concretização da venda casada.

Dadas as irregularidades presentes no processo de liberação, foram imediatamente impetradas várias ações contestatórias. Com efeito, a autorização da CTNBiO fora concedida a partir de uma documentação apresentada em inglês, quando no mínimo se impunha uma tradução juramentada.

E, além disso, houve dispensa do estudo de impacto ambiental (EIA) e do respectivo Relatório de Impacto no Meio Ambiente (RIMA), ao arrepio do inciso IV do artigo 225 da Constituição, que exige esse procedimento em situações como as do caso em pauta.

Uma vitória judicial impediu a liberação por um tempo, até que, em dezembro, a Monsanto conseguiu a suspensão da liminar. No dia 15 desse mesmo mês de dezembro, a CTNBio editava a instrução normativa nº 18, que no seu artigo 30 estabelecia o monitoramento das lavouras transgênicas por cinco anos.

O meio científico apontava a contradição. A própria CTNBio que afirmara não haver risco à saúde e ao meio ambiente, determinava o monitoramento dos plantios comerciais pelo prazo de cinco anos, o que pelo menos demonstrava dúvidas no concernente à questão do impacto o ambiental.

Contudo, da forma pela qual o monitoramento era proposto, não havia sequer garantia de independência. E principalmente persistia o fato de serem considerados insuficientes pelos especialistas os testes realizados pela Monsanto junto ao FDA (Food and Drugs Administration), o órgão fiscaiizador dos Estados Unidos.

Os cientistas e o Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) solicitavam uma moratória de pelo menos cinco anos para sustar a investida da Monsanto.

 

A fiscalização é calada

Em fevereiro de 1999, a empresa retirava seu pedido de registro no Ministério da Agricultura, aguardando melhor oportunidade, enquanto continuava acionando seu poderoso serviço de marketing e relações públicas. A essa época, ja dera um novo e fundamental passo no sentido de apropriação das sementes.

Uma nova tecnologia fora patenteada pela empresa Deita and Pine Land Co., com o aval do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Trata-se de uma modificação genética pela qual as sementes não dão nova safra. Isto é, criavam-se sementes com um gene logo apelidado de Terminator.

Detentora da patente desse gene, a Delta aceitou a oferta de compra da Monsanto, que assim se tornava a nova proprietária. Ou seja, a Monsanto se prepara para garantir que os agricultores voltem a adquirir seu produto todos os anos, sem que seja necessário à corporação mandar proceder a vistorias nas lavouras para flagrar um uso "clandestino" de sementes. Encontrara a melhor solução do seu ponto de vista. E dentro de uns poucos anos terá condições de vender aos agricultores sementes que produzem uma safra só, pois as decorrentes desse plantio serão estéreis. Agora, assim, a apropriação pelo cartel se completa.

Os agrônomos se assustam com essas potencialidades sinistras que o cartel descobre na ciência. E se as sementes suicidas, como já são chamadas, transmitirem esse gene às plantas à sua volta e dizimarem, por exemplo, a reprodução florestal ou o cultivo de produtores vizinhos?

Mesmo depois de retirado, em fevereiro, o pedido de registro do Ministério da Agricultura, prosseguia a contestação à decisão da CTNBio, com base no não cumprimento das exigências referentes ao Estudo de Impacto Ambiental.

Movida uma ação, o Ibama foi intimado pelo Ministério Público para realizar o EIA. Porém, o ministro do Meio Ambiente já se manifestara contra os transgênicos, e o lbama corretamente respondeu que desejava integrar a ação como co-autor, defendendo a necessidade do EIA/Rima. Foi advertido pela Advocacia Geral da União (AGU) por apoiar uma ação cautelar contra a própria União.

Estabelecido o debate interno no governo, o Ministério da Agricultura fazia saber que o processo de introdução de organismos geneticamente modificados não tinha volta.

Simultaneamente, o presidente da República declaradamente assumia a coordenação da discussão, orientando-a visivelmente nessa mesma linha.

Em abril, o novo ministro da Ciência e Tecnologia, Bresser Pereira, entrava em cena abertamente, declarando que a autorização do plantio do produto, decidida pela CTNBio, do seu ministério, era definitiva.

Na primeira metade de maio, o mesmo ministro intensificava a defesa da introdução da soja transgênica com o argumento de que o Brasil era o único grande produtor que ainda não aderira. Não levava em conta os riscos de toda a ordem, cada vez mais evidentes, que estes outros produtores correm, e cuja experiência deveria servir ao Brasil, para justamente não repetir o mesmo erro.

Também não considerou que a conduta por ele recomendada, além de obviamente favorável à multinacional e prejudicial aos nossos agricultores, ainda serve à estratégia dos Estados Unidos de deixar sem opção alternativa países consumidores como a União Européia e o Japão, que preferem a soja transgênica e preferem a nossa.

Preparando o terreno, a Monsanto, que retirara em fevereiro o pedido de registro no Ministério da Agricultura, voltava a solicitá-lo. Juntamente, era encaminhado o pedido de proteção intelectual dos cultivares.

Assim, no dia 5 de maio, a Monsoy Ltda., subsidiária da Monsanto, encaminhava ao Serviço Nacional de Proteção dos Cultivares, o pedido de registro de cinco variedades de soja transgênica, para plantio comercial. Trata-se de variedades desenvolvidas pela FT Sementes, do Paraná, que foi comprada pela Monsanto. O registro foi concedido no dia 17 de maio.

 

SBPC deseja debater o problema

Imediatamente, passou a transitar na Justiça Federal um novo pedido de liminar para garantir a proibição do cultivo. Para o chefe do Serviço Nacional de Proteção dos Cultivares, a questão estava encerrada, não havendo mais o que discutir do ponto de vista da segurança humana, ambiental e animal, visto já haver a CTNBio aprovado o plantio desse ângulo.

Na oportunidade, esse funcionário sentiu-se na obrigação de declarar que não recebera nenhum tipo de pressão para aprovação; provavelmente, ele próprio se sentia desconfortável com o triste papel que desempenhava.

Quanto à CTNBio, seu presidente, Dr. Luiz Antônio Barreto de Castro, uma vez concluído o serviço prestado à Monsanto, deixou o cargo passando para a Secretaria-Executiva, em busca, certamente, de uma exposição menor de sua pessoa. Missão cumprida, deve ter pensado, queixando-se dos patriotas que tivera de enfrentar.

Uma reunião interministerial no dia lº de junho último confirmava a autorização para o plantio da soja transgênica da Monsanto e fechava posição em torno da autonomia da CTNBio para continuar a emitir pareceres de permissão de testes e plantios experimentais.

Também foi constituído um grupo de trabalho para definir, dentro de 90 dias, a forma pela qual será monitorado, por cinco anos, o plantio da soja transgênica. Mas principalmente ficou acertado que não é necessário o estudo de impacto ambiental.

E por que dispensá-lo? Resporta governamental: a soja RR já passara pelo crivo de duas rigorosas agências reguladoras dos Estados Unidos - a FDA, que cuida de alimentos e medicamentos, e a EPA (Environmental Protection Agency) que cuida da proteção ambiental.

Ou seja, a CTNBio conferia a esses órgãos (FDA e EPA) um atestado de competência plena, contra todas as dúvidas gerais; e isso num momento em que as próprias universidades norte- americanas, à vista de novas evidências que revelam riscos não examinados, vêm questionando o açodamento e mesmo a falta de imparcialidade com essas entidades têm conduzido com respeito aos transgênicos. No entanto, a CTNBio concluía que o produto, introduzido há apenas três anos nos Estados Unidos, é seguro e pode ser difundido também no Brasil.

Cerca de uma semana depois da confirmação do registro, realizava-se no recinto do Senado, durante três dias, um seminário internacional sobre o tema Clonagem e Transgênicos: Impactos e Perspectivas.

Na ocasião, o Ministro Turra, da Agricultura, que participou da sessão de abertura, defendeu a decisão de seu Ministério, louvando-se no parecer da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), que o ministro considerou representativo da opinião da comunidade científica.

É espantoso que ele pense assim, quando a posição da CTNBio foi e continua sendo severamente criticada pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A comunidade científica mais representativa certamente não partilha da opinião da CTNBio, pelo menos no caso da soja transgênica. Com efeito, a SBPC insiste numa moratória de cinco anos (matéria também de uma proposta legislativa apresentada no Senado) não apenas para estudos ambientais e agroquímicos, como também para proceder a uma discussão e reflexão nacional que o agressivo e "envolvente" marketing da empresa interessada impediu de realizar.

Trata-se de algo bem diferente dos cinco anos de um duvidoso "monitoramento", proposto depois de autorizado o cultivo, sem que houvessem sido levadas em conta as peculiaridades do nosso agrossistema.

Por outro lado, nesse mesmo seminário, o Procurador da República no Distrito Federal, Dr. Aurélio Veiga Rios, manifestou-se contrário à decisão da CTNBio de dispensar a realização de estudos de impacto ambiental no processo da soja RR, comentando que a comissão passara por cima das atribuições do Ibama. E entre outras irregularidades, lembrou a portaria da Secretaria Nacional de Vigilância, do Ministério da Saúde, editada no ano passado, pela qual se tornava permitido o aumento do percentual de glifosato no herbicida Roundup, do qual é o principio ativo. Como dessa medida não havia decorrido qualquer vantagem de ordem agronômica, o Procurador concluía que o objetivo era outro, mais ligado ao incremento da venda casada dos dois produtos da Monsanto.

Quanto á SBPC, a entidade pretende naturalmente colocar a questão em pauta na stia reunião anual, a realizar-se entre 11 e 16 de julho. O encontro terá lugar em Porto Alegre, o que é uma feliz coincidência, dada a vigorosa resistência do Rio Grande do Sul aos cartéis de transgênicos.

Ainda antes disso, ficou programado para os dias 24 e 25 deste mês de junho, em Brasília, um seminario internacional sobre Biodiversidade e Transgênicos, promovido por parlamentares.

Para finalizar, concitamos a Sociedade Rural Brasileira, que tão bem se houve há alguns anos, por ocasião da luta contra o patenteamento de seres vivos, para que conclame os produtores a rejeitar a propaganda enganosa da Monsanto, de sinistras conseqüências.

O que está em jogo é a defesa dos agricultores e do territorio agricultável A Nação não considera a questão encerrada, longe disso!

 

Paula Beiguelman é professora associada da USP e Vice-presidente do Sindicato dos Escritores de São Paulo. Para este artigo, ela consultou, entre outras fontes, os textos dos doutores Glaci Zancan, Rubens Onofre Nodari, Miguel Pedro Guerra e Marilena Lazarini, estampados nos números 396, 400, 401, 403, 408, 409, 412 e 413 do Jornal da Ciência, publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Veja também o livro "O Escândalo das Sementes’t, de Pat Roy Mooney, traduzido e prefaciado pelo professor agrônomo Adilson O. Paschoal.

O Farol - Junho/1999

 

Texto reproduzido do site FarolBrasil.