COMO SE
BEBE O CHIMARRÃO
Os gaúchos utilizam a erva-mate
de duas maneiras: sob forma de mate doce ou chimarrão.
O mate doce, com açúcar, é tomado principalmente
pelas mulheres e crianças. Muitas vezes, a fim de torná-lo
mais saboroso costumam juntar à erva um pouco de mel, cascas
de laranja ou limão, ou ainda folhas de guabiroba, sendo
este último complemento uma herança dos índios
guaranis. Entretanto, nenhuma destas espécies de mate doce
consegue conquistar a simpatia do sexo masculino: para o campeiro,
nada é melhor ao paladar do que o amargor de um chimarrão.
O mate chimarrão consiste na infusão da erva-mate
ao natural, sem mistura de nenhum outro ingrediente. É verdade
que o gaúcho muitas vezes apela às propriedades medicinais
de outras ervas - tais como: a pata-de-vaca, erva-de-touro, cola-de-lagarto,
erva-de-bugre, etc. - agregadas à água do chimarrão.
Mas isto só se verifica em casos excepcionais: a maneira
mais generalizada de uso da erva-mate, entre os camponeses sul-rio-grandenses,
é o chimarrão puro e simples. A ação
de tomar um amargo os gaúchos chamam chimarronear, chimarrear,
amarguear, matear, ou simplesmente tomar mate ou tomar chimarrão.
Tomando mate, o gaúcho utiliza certos utensílios
especiais, a que dá o nome de avios do chimarrão:
São eles o chaleira ou chicolateira, para aquecer água;
a cuia, pequena cabaça em que se coloca a erva; e a bomba,
canudo pelo qual se ingere a infusão. A chicolateira
(origem de chocolateira) é utilizado principalmente pelos
andantes - carreteiros, tropeiros, etc. - e consiste numa lata comum
de folha-de-Flandres, com um pequeno braço de arame torcido.
Estas vasilhas, colocadas junto as brasas para aquecer a água,
após um certo tempo de uso tomam-se completamente enegrecidas
pelo acúmulo de fuligem ou picumã. A cuia
nada mais é do que um porongo seco, ou seja, o fruto do porongueiro
(Lagenaria Vulgaris, família das cucurbitáceas)
amadurecido e limpo de sementes. Muitos crêem que a espécie
porongo-de-cabeça, de paredes mais grossas, consegue dar
melhor sabor à erva-mate. Há diversas espécies
de cuia, devendo-se inicialmente traçar a principal divisão:
cuia tipo brasileira e tipo castelhana. Diferenciam-se diametralmente
estas duas espécies, já que a cuia castelhana nunca
atinge o diâmetro de uma polegada, na boca, enquanto a cuia
brasileira, a partir dessa medida, chega a alcançar duas
polegadas de abertura. Na fronteira-sul do Estado, além
do porongo, usa-se, para fazer cuias de chimarrão, principalmente
a cuia propriamente dita (crescentia cujetae), produto vegetal
que se distingue do porongo (redondo) por ter uma forma achatada.
Estas cuias às vezes apresentam as formas mais bizarras o
que se consegue passando embira ou arame em torno do fruto ainda
verde e fazendo-o crescer subordinado ao entralamento das cordas.
Quanto aos adornos, as cuias podem ser simples (sem enfeite
algum), desenhadas (a estilete ou a fogo), ou lavradas de prata
e ouro. Quanto ao material empregado na fabricação,
temos as cuias propriamente ditas, de cuia ou porongo - o tipo
mais generalizado -, e cuias de taquara, de porcelana ou de vidro,
estas de reduzido uso no Rio Grande do Sul. A bomba consiste
num canudo de 20 a 30cm. de comprimento por 5 a 10cm. de diâmetro,
achatado numa extremidade (bocal) e apresentando, na outra, um bojo
ôco e crivado da furinhos. A bomba primitiva resumia-se num
canudinho de palha ou junco, o qual, mergulhado na erva, permitia
a sucção do mate. No século XVII, dois tipos
de bomba eram conhecidos: a de prata, metal abundante então
na América, e a de taquara, confeccionada pelos indígenas
e repleta de arabescos multicores, resultado de um paciencioso trançar
de fibras coloridas. Atualmente, no Rio Grande do Sul é inteiramente
desconhecido o tipo de bomba vegetal: utiliza-se tão somente
a bomba de metal branco, entre os gaúchos menos abastados,
e a bomba de prata, muitas vezes com relevo e bocal de ouro.
Tanto as cuias como as bombas têm certas particularidades
variáveis de acordo com cada fabricante. Assim, é
curioso ver-se o gaúcho experimentando uma cuia que melhor
se amolde à sua mão, ou examinando cuidadosamente
o tamanho e quantidade dos furinhos da bomba.
Quanto aos furos de
uma bomba - calibre não muito estreito;
do contrário, se o sujeito se prende louco
a chupar, quando menos se dá conta, de
tanto que chupa e chupa, o pobre diabo, num upa,
pode do avesso virar!
(Eugênio Severo) |
Isto acontece quando a bomba
entope, e por mais que façamos pressão não
conseguimos tomar um gole sequer de mate. Cansamos os músculos
faciais, ficamos com os lábios ressequidos e perdemos a vontade
de saborear aquele mate tão renitente. E tudo isto porque
ele foi mal cevado. Chama-se cevar à ação
de preparar (ou servir) o chimarrão, o que não é
lá muito fácil, e requer bons avios e bastante prática
para que resulte saboroso e de fácil sucção.
Assim se procede para cevar um amargo: A
erva-mate - composta, como vimos, de folhas trituradas, paus e pó
- é despejada na cuia ocupando-lhe, horizontalmente, 2/3
da capacidade. Tapando-se com a palma da mão a boca da cuia
para que a erva não caia, faz-se uma inclinação
de modo que a erva-mate passe a ocupar, agora verticalmente, 1/2
da capacidade da cuia. (Na metade não ocupada é que
se despejará a água para a infusão). Durante
este ato, outrossim, bate-se levemente na cuia, fazendo-se com que
os pausinhos da erva venham para cima, enquanto o pó desce
ao fundo do porongo. Este pó será chupado durante
a preparação do mate e cuspido fora, impedindo-se,
desta maneira, que venha a entupir os orifícios da bomba.
O poeta Glaucus Saraiva, em seu
Mateando, nos dá uma perfeita idéia de como se procede
ao preparo de um chimarrão.
Palmeio o velho porongo,
derramo a erva com jeito, encosto a cuia no peito
batendo a erva prá um lado; com os quatro
dedos curvados formo um topete bem feito. Com
um pouquinho de água morna bem devagar despejado,
tenho o amargo ajeitado que ponho a um canto prá
inchar e espero a água esquentar pitando
o baio sovado. A pava chiou no fogo. Encho a
cuia que promete; a espuma se arremete bem prá
cima, borbulhando, e acariciante, beijando,
branquela todo o topete. Agarro a bomba de prata,
tapo o bocal com o dedão, e calço
o bojo bem no chão da cuia e vou destapando
a bomba que vai chupando um pouco do chimarrão.
Derramo outro pouco dágua para aumentar
o calor... e o mate confortador vou sorvendo
em trago largo, pois me saiu um amargo despachado
e roncador... |
O chimarrão sai despachado
e roncador quando, bem preparado, poder ser tomado sem dificuldade
alguma, pois não entope os furinhos da bomba, a qual, inteiramente
desimpedida, ocasionará, ao findar a água, sugestivos
ruídos, amplificados ainda graças à forma esférica
da cuia. E à alma gaúcha. eterna caçadora de
símbolos, não passará despercebida a mensagem
que lhe manda o mate:
Em teus últimos
arrancos, no ronco do teu findar, ouço
um potro corcovear na imensidão deste pampa.
E em minha mente se estampa, reboando dos confins,
a voz febril de clarins repinicando: Avançar! |
A cuia, preparada para o chimarrão,
fica dividida em duas partes uma metade vazia, e a outra ocupada
pela erva, que forma o chamado barranco, encimado pelo topete.
A água (em temperatura média de 80.º, pois se
muito quente torna a infusão por demais amarga e lhe tira
em poucos minutos todas as propriedades) é despejada na metade
vazia, e vai paulatinamente molhando a erva, permitindo, desta forma,
diversas infusões sem a necessidade de mudar-se a cevadura,
isto é, a quantidade de erva utilizada na cuia. Chega o momento,
porém, em que o chimarrão se torna fraco, perdendo
seu sabor; então pode-se virar a erva, isto é, passa-se
a erva (pôr meio da própria bomba para a outra metade
da cuia, antes vazia. Depois de novas infusões, a erva ficará
lavada, ou seja, perderá suas qualidades, o que se nota,
além da falta de sabor, pelo fato de não mais produzir
espuma, enquanto os pausinhos sobem à superfície da
água. Se o gaúcho pretender continuar chimarreando,
lhe restará ainda, antes de despejar fora a cevadura imprestável,
ensilhar o mate, isto é, pôr fora um pouco da erva
utilizada e substituí-la por uma nova, que constitui a ensilhadela.
O chimarrão é sempre tomado em grupos - a não
ser no caso de um indivíduo isolado - e a cuia vai passando
pela roda, todos chupando a infusão pela mesma bomba recém
utilizada pelo companheiro. Este ato quase sempre causa asco às
pessoas naturais de outros Estados que não o Rio Grande do
Sul; mas o gaúcho está tão acostumado a ele,
que nada vê de extraordinário. A pessoa que
prepara o mate, e que o servirá depois aos companheiros,
dá-se o nome de cevador. Os estancieiros têm, geralmente,
um cevador permanente, que será, no caso, o filho de um dos
empregados da estância. E constitui motivo de orgulho e grandes
esperanças, para o guri, ter sido escolhido para servir mate
ao estancieiro; orgulho, pela preferência de que foi alvo,
entre toda a miuçalha; e grandes esperanças porque
aquela predileção, verificada enquanto o piá
se entregava às correrias infantis, poderá se prolongar
durante a adolescência, e, se o gaúcho se portar bem,
um dia poderá ser feito capataz. Aliás, foi o cargo
de cevador, desempenhado às mil maravilhas por Antônio
Chimango, um dos fatores para que este chegasse a dono da Estância
de S. Pedro na célebre sátira política de
Amaro Juvenal.
No que chegava do
campo O padrinho, ele já rente, Coa
chaleira de água quente Prá cevar
o mate amargo: A ninguém deixava o encargo,
Nem mesmo estando doente. Sextilha
XCIV |
Ao encher
o mate, o cevador pega a chaleira numa maneira toda especial, sustentando
a asa com sua palma da mão voltada para cima. E eis uma curiosidade
que nos apresenta o chimarrão: o cevador é sempre
quem toma o primeiro mate, para depois oferecê-lo aos demais
componentes da roda. Este curioso fato encontra uma explicação
em velha superstição peculiar à zona da erva-mate.
Um arraigado costume dos gaúchos é o de sempre
procurar alcançar a cuia do mate com a mão direita;
e se impossibilitado de tal, não descuidará em dizer:
- Desculpe a mão... Mas, se alcançarmos um
mate com a mão esquerda constitui ofensa, não menor
ela será se nos agradecerem logo após o primeiro mate.
Isto significará que o chimarrão está mal preparado,
uma vez que só se agradece quando não se quer mais
chimarrear. Devido a este hábito, freqüentemente acontece
que alguma pessoa pouco é conhecedora dos costumes gauchescos,
ao tomar parte pela primeira vez numa roda do amargo, nota com espanto
que lhe ofereceram um único mate, e daí por diante
sempre a cuia dá um pulo quando é chegada a sua
vez. E o visitante fica impaciente se indagando uma explicação.
Por que deixavam-no de lado, se gostara tanto do mate, e fora tão
delicado, agradecendo gentilmente o obséquio ao devolver
a cuia. Quando o mate é tomado em família,
e os componentes da roda são habitualmente os mesmos, o chimarrão
é oferecido subordinado à autoridade dos membros da
família: primeiro são obsequiados os avós,
depois os pais e tios, e por fim os jovens. Isto, entretanto, não
se verifica nos galpões, pousos, rodeios e acampamentos;
nestas rodas campeiras, o mate-amargo vai passando entre a gauchada,
seguindo sempre a volta, pela direita, sem ver superiores nem
inferiores. E assim, passando de boca em boca, entre moços
e velhos, pretos e brancos, o chimarrão vai unindo todos
os homens na mais perfeita igualdade... a não ser que, subjugando
este costume igualitário, surja aquele homem respeitado,
verdadeiro imperador dos fogões crioulos, a quem o gaúcho
dá primazia em tudo: o visitante, muitas vezes um desconhecido.
Devido a este costume de se servir o mate perfeitamente pela
ordem, algumas vezes se encontram, nas grandes rodas de chimarrão,
os chamados pialadores (laçadores) de mate. São
inveterados mateadores que, ao ver a cuia fazer uma viagem tão
longa até que volte a suas mãos, impacientam-se, desesperam
e, para acalmar a garganta esbraseada, usam de um estratagema pelo
qual alcançam tomar mais mate do que qualquer um dos outros
companheiros. Levanta-se o gaúcho, como quem não
quer nada, vai até a porta do galpão, ajeita os pelegos
do pingo, estende o laço que estava mal enrodilhado, traz
mais um cepo à roda dos mateadores - faz, enfim, qualquer
cousa que possa ser feita - e volta ao grupo donde a cuia vai-se
aproximando. Como a roda corre sempre para a direita logo chegará
a sua vez. Toma, então o mate, e daí a pouco volta
ao lugar anterior, para esperar um novo mate. Estes pialadores de
mates, porém, devem ter o máximo de cuidado nessa
aventura, pois uma vez descobertos sofrerão boa represália
por parte dos companheiros. Mas, salvaguardando a tradicional
harmonia e igualdade dos fogões gaúchos, pouquíssimos
são os pialadores de mate; só mesmo aqueles muito
viciados - que não podem esperar muito tempo sem ter novamente
a bomba entre os lábios - Incorrem nesta transgressão
às leis crioulas. E, enfim, devemos convir que essa
transgressão não foi de extrema gravidade. Coisa muito
pior nos conta esta quadrinha popular argentina:
A una vieja muy matera,
un dia le faltó el mate; sin tener yerba
ni azúcar le puno al viejo en remate... |
Trecho extraído do livro "História
do Chimarrão", de Barbosa Lessa.
Cortesia: RSVirtual |