DE BONNER PARA HOMER O editor-chefe considera o
obtuso pai dos Simpsons como o espectador padrão do Jornal
Nacional
William Bonner: telespectador é burro e preguiçoso
Por Laurindo Lalo Leal Filho*
Perplexidade no ar. Um grupo de professores da USP está reunido
em torno da mesa onde o apresentador de tevê William Bonner realiza a reunião de
pauta matutina do Jornal Nacional, na quarta-feira, 23 de novembro.
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Perfil. Ele é
preguiçoso, burro e passa o tempo no sofá, comendo rosquinhas e bebendo
cerveja |
Alguns custam a acreditar no que vêem e
ouvem. A escolha dos principais assuntos a serem transmitidos para milhões de
pessoas em todo o Brasil, dali a algumas horas, é feita superficialmente, quase
sem discussão.
Os professores estão lá a convite da Rede Globo para
conhecer um pouco do funcionamento do Jornal Nacional e algumas das
instalações da empresa no Rio de Janeiro. São nove, de diferentes faculdades e
foram convidados por terem dado palestras num curso de telejornalismo promovido
pela emissora juntamente com a Escola de Comunicações e Artes da USP. Chegaram
ao Rio no meio da manhã e do Santos Dumont uma van os levou ao Jardim Botânico.
A conversa com o apresentador, que é também editor-chefe do jornal,
começa um pouco antes da reunião de pauta, ainda de pé numa ante-sala bem suprida de doces, salgados, sucos e café. E sua primeira informação viria a se tornar referência para todas as conversas seguintes. Depois de um simpático
bom-dia, Bonner informa sobre uma pesquisa realizada pela Globo que
identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional.
Constatou-se que ele tem muita dificuldade para entender notícias complexas e
pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo. Na redação, foi
apelidado de Homer Simpson. Trata-se do simpático mas obtuso personagem dos
Simpsons, uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão em
todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar no sofá, comendo
rosquinhas e bebendo cerveja. É preguiçoso e tem o raciocínio lento.
A
explicação inicial seria mais do que necessária. Daí para a frente o nome mais
citado pelo editor-chefe do Jornal Nacional é o do senhor Simpson. Essa
o Homer não vai entender, diz Bonner, com convicção, antes de rifar uma
reportagem que, segundo ele, o telespectador brasileiro médio não compreenderia.
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Pauta. Na reunião
matinal, é Bonner quem decide o que vai ou não para o
ar
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Mal-estar entre alguns professores. Dada a
linha condutora dos trabalhos atender ao Homer , passa-se à reunião para
discutir a pauta do dia. Na cabeceira, o editor-chefe; nas laterais, alguns
jornalistas responsáveis por determinadas editorias e pela produção do jornal; e
na tela instalada numa das paredes, imagens das redações de Nova York, Brasília,
São Paulo e Belo Horizonte, com os seus representantes. Outras cidades também
suprem o JN de notícias (Pequim, Porto Alegre, Roma), mas elas não entram
nessa conversa eletrônica. E, num círculo maior, ainda ao redor da mesa, os
professores convidados. É a teleconferência diária, acompanhada de perto pelos
visitantes.
Todos recebem, por escrito, uma breve descrição dos temas
oferecidos pelas praças (cidades onde se produzem reportagens para o jornal)
que são analisados pelo editor-chefe. Esse resumo é transmitido logo cedo para o
Rio e depois, na reunião, cada editor tenta explicar e defender as ofertas, mas
eles não vão muito além do que está no papel. Ninguém contraria o chefe.
A primeira reportagem oferecida pela praça de Nova York trata da venda
de óleo para calefação a baixo custo feita por uma empresa de petróleo da
Venezuela para famílias pobres do estado de Massachusetts. O resumo da oferta
jornalística informa que a empresa venezuelana, que tem 14 mil postos de
gasolina nos Estados Unidos, separou 45 milhões de litros de combustível para
serem vendidos em parcerias com ONGs locais a preços 40% mais baixos do que os
praticados no mercado americano. Uma notícia de impacto social e político.
O editor-chefe do Jornal Nacional apenas pergunta se os
jornalistas têm a posição do governo dos Estados Unidos antes de, rapidamente,
dizer que considera a notícia imprópria para o jornal. E segue em frente.
Na seqüência, entre uma imitação do presidente Lula e da fala de um
argentino, passa a defender com grande empolgação uma matéria oferecida pela
praça de Belo Horizonte. Em Contagem, um juiz estava determinando a soltura de
presos por falta de condições carcerárias. A argumentação do editor-chefe é
sobre o perigo de criminosos voltarem às ruas. Esse juiz é um louco, chega a
dizer, indignado. Nenhuma palavra sobre os motivos que levaram o magistrado a
tomar essa medida e, muito menos, sobre a situação dos presídios no Brasil. A
defesa da matéria é em cima do medo, sentimento que se espalha pelo País e rende
preciosos pontos de audiência.
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Notícia. A decisão do
juiz Livingsthon Machado, de soltar presos, é considerada coisa de
louco |
Sobre a greve dos peritos do INSS, que
completava um mês matéria oferecida por São Paulo , o comentário gira em
torno dos prejuízos causados ao órgão. Quantos segurados já poderiam ter
voltado ao trabalho e, sem perícia, continuam onerando o INSS, ouve-se. E sobre
os grevistas? Nada.
De Brasília é oferecida uma reportagem sobre a
importância do superávit fiscal para reduzir a dívida pública. Um dos
visitantes, o professor Gilson Schwartz, observou como a argumentação da
proponente obedecia aos cânones econômicos ortodoxos e ressaltou a falta de
visões alternativas no noticiário global.
Encerrada a reunião segue-se
um tour pelas áreas técnica e jornalística, com a inevitável parada em torno da
bancada onde o editor-chefe senta-se diariamente ao lado da esposa para falar ao
Brasil. A visita inclui a passagem diante da tela do computador em que os
índices de audiência chegam em tempo real. Líder eterna, a Globo pela manhã é
assediada pelo Chaves mexicano, transmitido pelo SBT. Pelo menos é o que dizem
os números do Ibope.
E no almoço, antes da sobremesa, chega o espelho do
Jornal Nacional daquela noite (no jargão, espelho é a previsão das
reportagens a serem transmitidas, relacionadas pela ordem de entrada e com a
respectiva duração). Nenhuma grande novidade. A matéria dos presos libertados
pelo juiz de Contagem abriria o jornal. E o óleo barato do Chávez venezuelano
foi para o limbo.
Diante de saborosas tortas e antes de seguirem para o
Projac o centro de produções de novelas, seriados e programas de auditório da
Globo em Jacarepaguá os professores continuam ouvindo inúmeras referências ao
Homer. A mesa é comprida e em torno dela notam-se alguns olhares constrangidos.
* Sociólogo e jornalista, professor da Escola de Comunicações e
Artes da USP
Fonte: Revista Carta Capital
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