O CHIMARRÃO E OS GAÚCHOS


Cerremos as pálpebras e tentemos trazer ao mundo da imaginação a figura de um gaúcho. Logo hão de surgir os contornos de um cavaleiro imponente, vestes coloridas, montado num corcel fogoso, olhos postos no sem-fim da planura. Mas tentemos, agora, subtrair da cena aquele cavalo em atitude sobranceira. E nos criaremos então um embaraço: como vislumbramos, no vulto imaginado, um gaúcho autêntico, se lhe tiramos o complemento indispensável? Como afastar do campeiro do sul o seu “pingo” escarceador, sem o risco de ferir-lhe a autenticidade?

Mas eis que tudo se resolve: aqueçamos a água da chicolateira ao calor do fogo-de-chão, retiremos um pouco de erva-mate do saquinho resguardado no fundo da mala-de-garupa, e alcancemos ao gaúcho a cuia do chimarrão.

No mesmo instante, há de fulgir novamente o seu aspecto típico.

E devemos notar que, mais do que o próprio “pingo”, o mate-amargo constitui a principal característica do crioulo rio-grandense. O gaúcho poderá deixar o pago, em busca do traiçoeiro brilho das cidades; poderá substituir o mugido melancólico da tropa pela ensurdecedora azáfama das fábricas; poderá se despedir da chinoca de longas tranças, vender o cavalo e os arreios, abandonar o rancho... mas jamais se apartará dos seus avios do chimarrão... E que os tempos corram, trazendo o progresso! Que os bretes e armados se estendam tanto e tanto que as lidas da pecuária venham a se transfigurar por completo! Que os cavalos crioulos não mais relinchem na coxilha, que a santa-fé dos ranchos ceda lugar ao colorido das telhas francesas, e que o umbú frondoso - teto de mil gerações - tombe por terra! Tudo poderá evoluir, transmudando a vida pitoresca dos pampas. Mas sempre haverá o chimarrão, alimentando as tradições gaúchas, recordando as arrancadas do passado, levando de boca em boca a seiva pátria.

Na zona rio-grandense em que vive o gaúcho propriamente dito, toda a vida da querência - as lidas do campo, as tropeadas e pousos os amores singelos e os ódios - tudo isso é regado pelos sorvos da erva-mate. E, numa estância, o dia sempre se inicia com o “amargo”...

 

Não é a luz bem nascida
Já eu junto do fogão
Me preparo para a lida
Tomando o meu chimarrão...
É ele o constante amigo
Que vem logo ter comigo
Do dia ao primeiro alvor.
Da mente as névoas consome,
Mata a sede, ilude a fome
E a todo ser dá vigor.
(Assis Brasil).




Na verdade, ainda dormiam os campos nos braços da noite - silêncio sepulcral apenas cortado, de quando em vez, pelos quero-queros alertando a solidão - quando o peão caseiro abrindo com as alpargatas dois caminhos no orvalho esbranquiçado, se dirigira ao galpão, para reavivar o fogo esmaecido. E quando a peonada levantou, ao apontarem as barras do dia, o primeiro aperto de mão foi à cuia do mate-amargo. Muitas vezes, somente horas mais tarde, já cumpridas as primeiras tarefas, é que os gaúchos hão de voltar “as casas”; a mesa, então, estará preparada para o café, pois há muito as chinocas da estância haviam saído da mangueira com o leite da brasina espumando nas vasilhas.

Mas o dia se iniciara com o “amargo”. E com ele também se encerraria...

 

Na estância, depois da janta
co’o rasto linda na garganta
do gostito do feijão,
a peonada se entretia
contando os causos do dia
na roda do chimarrão...
(Vargas Netto).



É então que os campeiros alcançam o prêmio das canseiras do dia. Em torno do fogo, com a cuia a passar de mão em mão - acocorados uns, outros sentados em cepos de cortiça ou caveiras de bovinos - vão recordando as façanhas do rodeio, a rodada do Jango, do pealo de cucharra que o Neco largou prá cima do tourito pampa fazendo-o cantar o lombo de encontro ao solo após a caravolta completa. O gaúcho, geralmente calado todo o dia, já que a lida com o gado lhe toma toda a atenção, se transforma no estabanado contador de aventuras quando sente a quentura do mate acariciar-lhe a garganta. Todo o seu silêncio se queima, então, nas brasas, e já se ouvem os casos, contraponteados por “gargalhadas de galpão” tonitroantes, transbordantes de vida e de alegria.

 

Enquanto a gente mateia
E acende um pito palheiro,
Quanta história vem, ligeiro,
À roda do chimarrão!
Se a cousa é mesmo de graça
Se solta cada risada,
Como gaita debochada
Em polca de relação
(Eugênio Severo)



Na roda do amargo, mais do que nunca, o gaúcho sente agitar-se a sua alma abarbarada. Aquecido pelo calor das brasas, ressurge o gênio das coxilhas. Naquele convívio íntimo dos homens, abrem-se os corações no relato das emoções sentidas. E as histórias de amor desfilam, entremeadas dos episódios guerreiros de 23, interrompidas pelo relato da última carreira, abrilhantadas pelas trovas de improviso ao compasso das violas. E os homens riem, felizes. O corpo sacode, na gargalhada gostosa, e a água quente, derramando da cuia, escalda as mãos do gaúcho, dando ensejo a novas gargalhadas, mais gostosas ainda. E qual um cachimbo da paz, o chimarrão vai selando amizades, vai enovelando as almas simples dos homens do campo, vai aquecendo ao fogo-de-chão o espírito humanitário e cavalheiresco da gente pampeana.

Quando a cordeona dá o último acorde, e o capataz se recolhe, lembrando à peonada que a “campereada de amanhã vai ser de arder caracu”, ainda é o fogo da roda do chimarrão que, num derradeiro luzir, vai dizer que o dia já findou na estância.

Se, entre os homens de uma mesma fazenda, o mate muito contribui para firmar-se o espírito de solidariedade, não menos digna é a sua tarefa de simbolizar a hospitalidade gaúcha.

Chegai a uma propriedade rural do Rio Grande. Mal a cachorrada, cansada de latir, fica gemendo ao redor do forasteiro, já alguém, percebendo a visita, gritará o “Apeie-se e passe”. A porta da casa se abre de par em par, e julgareis ouvir das paredes que “este rancho é seu”. O primeiro cuidado dos bons donos da casa será, então, brindar o viandante com um amargo recém cevado.

 

E a cuia, seio moreno
que passa de mão em mão,
traduz no meu chimarrão,
em sua simplicidade,
a velha hospitalidade
da gente do meu rincão.
(Glaucus Saraiva)


Os “causos” se estenderão pela tarde afora, e ninguém afirmaria que aquela amizade se iniciara há pouco. E quando o sol, alongando a sombra das figueiras, afirmar que já é hora de partir, ainda ouvireis, significando “fique mais um pouco”, “dê-nos por mais tempo a alegria de sua presença”, a tradicional frase gaúcha:

- Tome mais um mate...

E quando já estiverdes “de pé no estribo”, pronto para seguir viagem, mais uma vez gritará a hospitalidade gaúcha no sorriso tímido do gauchinha vos ofertando o “mate do estribo”.

Dissemos acima que nada mais acertado do que o chimarrão, para simbolizar o cavaleiro dos pampas. Na verdade, vemos o mate acompanhando todos os passos da gauchada.

Nas tropeadas, quando a noite desce e os campeiros ficam esperando que o gado se acomode, é o amargo que aviva as conversas do serão. Abandonado nas divisas da estância, o alambrador terá por único companheiro o chimarrão. À sombra do umbu frondoso - mãos trêmulas ainda firmes no manejo dos tentos - encontraremos o velho trançador gaúcho alentando o seu espírito creacionista com os goles do mate-amargo. E o primeiro gesto do carreteiro, ao desprender os bois, no pouso, é acender o fogo para o chimarrão. Ai dele, porém, se, comodista, quiser aproveitar os carvões que restaram do fogo do último carreteiro! Todos sabem que a fumaça do “Fogo Morto” traz em si um manancial de desgraças...

Nas horas de tédio ou de alegria, nos dias felizes ou desditosos, no rancho ou no campo aberto, será o chimarrão o mais fiel companheiro do gaúcho. Para acalmar a canseira, nada melhor do que ele. Nem nada melhor do que uma cuia de mate para “sentar o bóia”, quando o churrasco ficou “pesando” no estômago. E, tirando nó-nas-tripas ou doença complicada, dessas de chamar médico, qualquer mal se entrega a uns goles de erva-mate.

 

Se alguma doença prostá-lo procura,
Não quer o gaúcho provar a mistura.
De exóticas troca.:.. rejeita a injeção...
Pois ele bem sabe que a força e a saúde
Dependem apenas de um chá e da virtude
Que encerra uma cuia do bom chimarrão...
(Barcelos Penna).




Com esse “tratamento” resiste o gaúcho à doença. Ei-lo novamente esporeando o pingo pelas coxilhas, distribuindo saúde nos gritos da tropeada ou medindo suas forças com as do animal selvagem nos malabarismos da doma.

Mas um dia - “por boa que seja a erva não há mate que não se vire” - o campeiro perde toda aquela riqueza que ele tanto estima: a querência. Novos rumos são traçados à sua vida, e ele, atando a mala-do-poncho e acenando um “até a volta” sentido ao companheiro, ruma a pagos distantes, seguindo a trotezito pela estrada, tentando acalmar os corcovos do coração no assobio alegre de um chotes.

E o tempo corre, aguçando cada vez mais as esporos da saudade. Deitado nos pelegos, o gaúcho passará noites inteiras de olhos fitos no vácuo, recordando as cousas da querência. As vozes dos amigos ainda cantam em seus ouvidos; e as águas lamurientas do rio Camaquã; e a gaita roncadeira do Zé Manuel animando os bailes do seu Morais e o riso cristalino da gauchinha - riso que brinca naqueles lábios vermelhos com polpa de pitanga, naqueles olhinhos negros como guabiju. Tudo mudou... Tudo, menos o sabor amigo do chimarrão, seu confidente, seu relicário de saudades...

 

Na tristeza
Da ausência
Da querência,
Vais o mel da esperança distilando...

Mateando, o tempo vai passando
Mais sereno, ameno;
Mas então
Até pareces doce,
Chimarrão!
(Francisco de Magalhães).



Mas Deus é grande... e um dia o gaúcho volta ao pago! O galpão se enche de risos e abraços, a gaita rompe numa rancheira pulada, homenageando o amigo que retornou ao rincão, e a cuia trabalhada a fogo será a taça rústica no voto de boas-vindas. Sorvendo a erva querida, o campeiro ficará sabendo tudo o que houve nos pagos durante os anos de ausência. E será o chimarrão, também, o padroeiro do encontro do gaúcho com a sua chinoquita linda, que todo aquele tempo ficara penando de saudade.

 

Num canto da varanda, sozinhos, eles... “tomam mate:
Desculpa boa prá eu apertar os dedos da chinoca
Quando, horas a fio
Ele me alcança esse amargo, que é tão doce!
Ele é o melhor protetor dos namoros do pago...
Quanto beijo transmite sem querer!...
Quando ela toma um gole antes de mim,
E deixa a boca como uma flor colorada
Na haste branca da bomha,
E fica assim... sem dizer nada...
Depois, que mate bom!
(Vargas Netto)



E assim, toda a vida do gaúcho é pontilhada pelos sorvos do amargo. A primeira vez que ele prova o mate - há tanto tempo, era então um pinguinho de gente! - foi num dia em que a peonada partira para o campo, e deixara a cuia abandonada ao lado dos tições, ainda com a cevadura utilizada há pouco. A erva estava lavada, a água fria, e até um pouco de cinza se intrometera na boca da bomba. Mas como aquele mate era gostoso! Pagara a pena provar!... Depois, foi a mamãe bondosa que - soprando na bomba para não queimá-lo - lhe deu um pouco de mate doce, gostoso como suco de guabiroba madura. E uma noite - já com corpo de gente e entonado como os “grandes” - lhes alcançaram a cuia na roda da peonada. Desde aí, para o resto da existência, o gaúcho terá por complemento inseparável a erva-mate. E quando um dia, pela primeira vez ele sentir a proximidade da morte, há de surgir-lhe à mente tudo o que de bom irá perder. O pingo, o rancho, a mulher e a criançada, a ponta de gado, o cusco oveiro companheiro de mil tropeadas, a cuia flor-de-porongo... E, com os olhos postos no céu, o gaúcho fará o seu mais sagrado pedido:

 

Deus Nosso Senhor me atenda,
eu peço com devoção:
cair com cuia na mão
quando chegar a hora extrema,
sussurrando a prece em poema
à bomba do chimarrão...
(Waldomiro Souza)


Trecho extraído do livro "História do Chimarrão", de Barbosa Lessa.

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