O MATE NO RIO GRANDE DO SUL


Já rolara um século desde o início da colonização do Brasil, e o Rio Grande ainda era uma imensa campina palmilhada apenas pelas tribos selvagens. Quatro eram os grandes grupos raciais ameríndios que ocupavam esse território: os guaranis - a principal nação - a que se filiavam o tapes aracanes e carijós, ocupando a maior parte da região: os tapuias, representados pelos caágua, ao norte da Lagoa dos Patos; os guananás - da grande tribo tupi - nas matas do Alto Uruguai; e os guaicurus (guenoas, minuanos e charruas), povo cavaleiro que galopava pelas planuras ao sul do Ibicuí e do Camaquã.

Foi com essa gente - atirada ao mais completo estado de selvageria - que os jesuítas espanhóis tomaram contato, ao expandirem para o leste a sua obra catequética. E já podemos imaginar quão árdua foi essa tarefa de trazer o gentio para o cristianismo. Os primeiros passos desta avançada de civilização, na verdade, foram regados a sangue. Roque Gonçalez, João de Castilhos e Afonso Rodrigues - os bem-aventurados mártires do Rio Grande - recebem, como prêmio ao seu amor pelos indígenas, a ira do feiticeiro Nheçu, culminada pelo massacre dos três jesuítas. Logo após, era o Padre Cristóvão de Mendoza - o primeiro tropeiro do Rio Grande do Sul - a cair sob o machado dos caáguas. E muitos outros sacerdotes haveriam de pagar com a vida o seu ideal humanitário.

Não desanimaram, no entanto, os filhos do Sto. Inácio. E novos missionários atravessaram o rio Uruguai, indo iluminar a escuridão das selvas com as luzes do Evangelho. Esta luta de conquista espiritual durou mais de meio século. Mas, alcançado o limiar do século XVIII, via-se a obra Jesuíta coroada do mais pleno êxito: baqueara a selvageria guarani frente à doçura das palavras de Cristo; e, dominando o topo das matarias, se alteavam os Sete Povos das Missões Orientais.

A vida das Missões Jesuíticas do Tape foi tão curiosa e agitada, que se nos depara difícil tentarmos resumir-lhe a história. Entretanto, poderemos dizer - no mais breve resumo possível - que a obra dos jesuítas teve um quê de epopéia; e os sertões do Rio Grande, sem dúvida, nada devem invejar àqueles sertões abençoados pela ação legendária de Anchieta e Nóbrega.

Norteados por um notável espírito de abnegação, incentivados por uma boa cultura adquirida nos conventos europeus, e amparados na pujança de milhares de braços índios, os jesuítas do sul fizeram das Missões um assombroso foco de civilização no Novo-Mundo. Suas catedrais ostentavam uma majestade que encantava os próprios olhos europeus. Suas fornalhas trabalhavam sem cessar, moldando arados e sinos, para que a terra fosse fecundada por novas sementes e para que as almas ouvissem mais forte a voz do Senhor. Milhares de cabeças de gado - colhidas ao pampa deserto - foram costeadas em torno às cidades, enquanto uma aperfeiçoada indústria de tecelagem ia cobrindo a nudez dos guaranis. Em sua redução de São João Batista o Padre Antônio Sepp fundia o primeiro ferro americano e, logo após, num avanço de um século sobre a civilização européia, descobria a fabricação do aço. E cem mil guaranis rompiam os campos e desbravavam as matas, forjando a maior grandeza do “Império Jesuítico”.

“Mais de cem mil almas debaixo do governo teocrático - o melhor, como diz o eloquentíssimo Raynal, se fosse possível conservá-lo na sua pureza; falando todos um idioma, o Guarani; sem leis civis, pois que entre eles era quase imperceptível o direito de propriedade; nem mesmo das produções da sorte de terras que se adjudicava a cada pai de família era lícito dispor a seu arbítrio, sem a direção do cura; os artífices e lavradores levavam a risca aos depósitos públicos o fruto do seu suor e das suas fadigas, vivendo em comum: os religiosos diretores com os magistrados do povo proviam, e velavam sobre as precisões de cada um; sem leis penais, pois que todas eram preceitos de religião, as transgressões se puniam com jejuns, orações, cárcere e algumas vezes flagelações e extermínio; o culpado se acusava ele mesmo aos pés do magistrado, e recebia os castigos com ações de graças: no fundo dos sertões da América parecia enfim realizada essa República ideada por Platão e por Thomás Moro”.

Muito antes dos jesuítas se terem entregue ao comércio do mate, já se dedicavam eles à exploração dos ervais, a fim de proverem às exigências dos guaranis, visto que “sem esta erva - como escrevia o Pe. Nusdorffer no século XVII - o índio não pode viver”.

As maiores concentrações de mate se encontravam às margens dos rios Ijuí, Nhucorá e no Alto Uruguai. Ocorria, entretanto, que essa região era habitada por uma das inúmeras tribos tupis que se espalhavam por todo o Brasil - ali conhecida pelo nome genérico e que constituia o maior terror dos guaranis. Estes, embora numerosos e senhores de quase todo o território rio-grandense, eram presas de tal temor, em relação às flechas dos tupis, que sempre procuravam fugir aos encontros com o inimigo, e só em último caso penetravam nas selvas do Nhucorá e Ijuí. A causa deste medo eram as freqüentes histórias terroríficas que se contavam a respeito daquele povo, a cuja ferocidade se aliava o hábito - inusitado entre os índios rio-grandenses - de devorarem seus prisioneiros. Entre outras superstições, criam os índios missioneiros que os homens daquela tribo não possuíam dedos nos pés; em lugar destes, apresentavam um segundo calcanhar: com estes dois calcanhares, portanto, os tupis podiam percorrer os caminhos despreocupadamente, já que suas pegadas não denunciavam qual a direção seguida. Com o crescente desenvolvimento dos Sete Povos, os tupis foram paulatinamente recuando para o nordeste, até se fortificarem no Alto Uruguai, emboscados em densas matarias que eles conheciam palmo a palmo.

Mas durante muitos anos eles foram os donos das selvas de Missões. E, devido ao medo dos índios, os jesuítas se viram obrigados a buscar os ervais do Camaquã (ao sul do atual RGS) e da Lagoa dos Patos.

Enquanto os índios do Guaíra empreendiam suas viagens aos ervais subindo o Paraná em grandes embarcações, os ervateiros das Missões rio-grandenses iam montados a cavalo, levando uma boa provisão de erva-mate, de que não podiam prescindir, além de 500 a 1000 reses, para seu sustento naquela viagem de cento e tantas léguas. A retaguarda, seguiam mais 50 carretas e cerca de 300 bois, que utilizariam no transporte das colheitas.

No benefício da erva demoravam-se os índios muitos meses. E quando - cumprida a tarefa - voltavam eles aos povos, o primeiro ato que praticavam, acompanhados por toda a população, era procurarem a igreja, em cujos altares, em solenes festividades, agradeciam a Deus aquele favor de não lhes ter faltado o mate.

Os ervais missioneiros faziam parte do Tupambae (Tupá - Deus; mbae - propriedade), ou seja, o campo comum, cujos produtos adviriam em proveito da coletividade. Toda a erva colhida no Tupambae era entregue aos curas, para que - retiradas as quantidades necessárias para cobrir as despesas do culto divino - fosse depois distribuída à população.

“Cada dia, depois de ouvirem a missa, e igualmente depois do rosário que se reza pela tarde, os que acudiram ao templo vão receber o mate, uma onça e meia pelo menos para cada pessoa, o qual lhes dá o mordomo em presença do cura e do corregedor. Aos que estão ocupados em serviço público, seja em ofícios, seja fora no campo, envia-se-lhes a quantidade de mate que parece proporcionado ao número de trabalhadores. Igualmente é preciso prover de erva aos que cuidam de gado nas estâncias e nas pastagens; e se alguns índios são enviados de viagem, não há de faltar nunca este artigo entre suas provisões”.

Os ervais do Camaquã, porém, eram da qualidade inferior, e o produto ali colhido possuia um sabor desagradável. Foi levando em conta este inconveniente - e tendo em vista principalmente o fato de que as viagens até os ervais roubavam muito tempo aos trabalhos dos Povos, - que os jesuítas resolveram iniciar as suas plantações de mate. E em pouco tempo, como vimos, os ervais cultivados nas Missões alcançavam um lugar proeminente na economia colonial da América.

Até meados do século XVIII continuava o Rio Grande praticamente desconhecido dos portugueses. A não ser as transitórias incursões que os bandeirantes faziam ao sul, capturando índios ou arrebanhando gado, nenhuma expedição ainda se verificara com a finalidade de tomar posse daquele território. Enquanto isso, os espanhóis iam palmilhando as campanhas rio-grandenses de ponta a ponta. Assim é que, em 1735, quando o paulista Manoel Dias da Silva penetrou no Rio Grande comandando uma expedição desbravadora, veio encontrar nos campos da Vacaria - bem perto, portanto, de Laguna - uma inesperada cruz de pedra em que se lia: “Viva el-Rey de Castella, Señor destas Campañas!”

Naquela mesma tarde um outro marco se alteava, ao lado da cruz de pedra lançada por terra: “Viva o muito alto e poderoso Rei de Portugal, D. João V. senhor destes desertos da Vacaria”.

E se iniciara a conquista do Rio Grande.

Em 1737, José da Silva Pais levanta um presídio à entrada da Lagoa dos Patos e espalha seus 200 soldados, em três fortalezas, pelo litoral do Atlântico sul. Em 1742, chegam ao “Continente d’El Rey” os primeiros colonos açorianos, fundando os povoados de Viamão e Porto dos Casais (Porto Alegre), à extremidade norte da Lagoa dos Patos. Com a fundação do forte de Rio Pardo, às margens do Jacuí, completava-se a obra firmadora da coroa portuguesa no solo rio-grandense. E este movimento foi o suficiente para que muitos paulistas e lagunistas viessem buscar as terras do “Continente”, estabelecendo-se com estâncias nos campos de pastagem ou procurando tirar aos jesuítas as riquezas de seus ervais silvestres.

Por essa época, o uso do mate já era popular entre os nativos rio-grandenses, mesmo aqueles que não se tinham reduzido à catequese jesuítica. Haja visto o caso dos charruas - índios cavaleiros cujo nomadismo foi sempre um obstáculo à obra dos jesuítas - os quais, embora vivendo longe das Missões, receberam delas o hábito do mate por intermédio dos desertores missioneiros, a quem recebiam com a mais terna acolhida.

Os minuanos, por sua vez, eram inteiramente viciados pela erva-mate, e de tal maneira que, quando esta lhes faltava, por não possuírem ervais em suas terras, não titubeavam em atacar as possessões missioneiras. O dr. José de Saldanha encontrou-os por ocasião da demarcação de limites, após o tratado de S. Ildefonso, e deles nos deixou esta descrição: “Parcos são no alimento, porém de sua demasiada preguiça procede a sua parcimônia; eles tem que ir ao campo carnear as reses, ou trazê-las para o pé das toldarias; esta carne, ou de veados, pouco assada, e ainda os caracarás, e outras semelhantes aves das rapina, ou alguns avestruzes, são a sua usual comida. A bebida do mate não a deixam enquanto tem desta erva, como também de mascar o tabaco de fumo e conservar a masca ou entre o beiço superior e os dentes, ou tirando-a da boca e pondo-a atrás da orelha, onde a guardam até que a tornem a mastigar”.

Dos índios, o uso do mate logo passou aos colonizadores. Entrou vitoriosamente nos quartéis dos dragões e penetrou com idêntico sucesso nas povoações dos ilhéus. E já em 1755 o mate rio-grandense era enviado à Europa, juntamente com os utensílios que os índios e os “gaúchos-do-campo”, utilizavam para tomá-lo. Vemos isto por uma carta que o general Gomes Freire de Andrade enviava ao ministro Diogo Mendonça Corte-Real, aconselhando-o a que se dedicasse ao uso da erva mate, já que suas qualidades medicinais eram preciosas, o que verificara ao se curar de uma renitente dor nas pernas, proveniente de cálculos renais.

Se o mate já conquistara as fortalezas e as povoações, não tardaria em conquistar as estâncias. E, de fato, nelas ele se tornou um uso obrigatório e salutar, como corretivo da alimentação essencialmente carnívora dos campeiros; pois já então o churrasco mal-assado e sem sal era o manjar típico dos gaúchos.

“Uma cousa digna de se notar é que no interior da província pouco sal se come, pela dificuldade de o transportar; nota-se mesmo que, nos lugares onde penetra com mais facilidade, não se faz maior empenho em procurá-lo: parece que, pela falta de costume, se perde o apetite de tão usual condimento, e talvez mesmo a necessidade dele; o que vem a ser uma refutação completa do sistema de alguns doutores estrangeiros que pretendem que sem sal o estômago perde a faculdade de trabalhar e desenvolve uma geração de vermes que mata o homem. Na falta de sal, o habitante do centro do Rio Grande facilita a digestão com a erva-mate de que usam incessantemente. E como o açúcar é tão raro como o sal no interior da província, acresce que o mate se toma como a natureza o produz, sem receber mistura alguma que altere a energia de seu amargo originário”.

Desde 1752, as fronteiras do sul do Brasil vinham sendo riscadas a ponta de lança, e ora avançavam, ora recuavam, subordinadas às correrias das tropas espanholas e portuguesas, ambas lutando pela posse do rico solo rio-grandense. As Missões Jesuíticas não se puderam furtar a esse gingar de fronteiras. E, firmados os tratados na Europa, passavam elas ao domínio de Portugal, para logo retornar à coroa espanhola, e vice-versa, numa situação incerta que perdurou até o alvorecer do século XIX. No ano de 1801 - quando uma nova guerra se feria entre as duas poderosas nações da península ibérica - um punhado de rio-grandenses, comandados por José Borges do Canto e Manoel dos Santos Pedroso, resolveram conquistar definitivamente o território missioneiro. Avançaram vitoriosos por sobre os Sete Povos - já abandonados pelos jesuítas - e em pouco tempo eram donos daquelas campanhas. Sobrevinda a paz, estabeleceu-se o uti possidetis como única regra a ser seguida na delimitação das fronteiras. E assim a região missioneira se incorporou para sempre ao Brasil.

Nada restava, entretanto, do antigo esplendor das Missões. O estado de abandono em que se encontravam os templos e colégios jesuíticos - não de todo destruídos pelo fogo - propiciavam o mais desenfreado furto das múltiplas alfaias e dos preciosos paramentos que os padres haviam deixado, em sua fuga. As plantações de erva-mate foram invadidas pelo mato, e as estâncias assaltadas pelos tropeiros, levando impunemente seus gados para as charqueadas de Rio Pardo e Pelotas. Além disso, grandes recrutamentos eram feitos pelo exército português entre a população missioneira, roubando muitos braços jovens ao trabalho das lavouras.

E como se não bastassem estes percalços, surgiram os índios coroados, descendentes do tupis, tradicionais inimigos dos guaranis, e que há quase um século viviam atirados ao fundo das florestas, corridos pelo poderio jesuítico. Agora, com o aniquilamento da raça guarani, eles viam chegada a hora da reconquista. Comandados pelos caciques Prudente, Fongue e Doble, assaltavam estâncias, exterminavam famílias inteiras de guaranis, e atacavam as caravanas a fim de saqueá-las, espalhando o terror pela região missioneira, que logo se despovoava, com o êxodo da população para a zona da campanha.

Durante mais de dez anos a exploração dos ervais esteve paralisada, em vista dos perigos da penetração nos domínios coroados. Foi este o período negro da erva-mate, no Rio Grande, e o período áureo da caúna, fornecedora de um mate muito amargo, ao qual os gaúchos logo tiveram de se acostumar.

Mas um dia a esperada notícia ecoou pela província: a região missioneira estava pacificada! Os coroados - contra os quais nada haviam conseguido as armas dos brancos, pois eles conheciam como ninguém os esconderijos dos rios Uruguai e Ijuí - haviam cedido às propostas magnânimas dos irmãos Silva Machado, novos desbravadores daqueles sertões. E novamente a erva missioneira descia os caminhos da Serra, em busca dos campos da Vacaria, das estâncias da Campanha e das incipientes cidades às margens da Lagoa dos Patos e dos rios que nela desaguam.

E já em 1820 Auguste de Saint-Hilaire podia escrever: “O uso dessa bebida é geral aqui. Toma-se ao levantar da cama depois várias vezes ao dia. A chaleira de água quente está sempre ao fogo e logo que um estranho entra no casa se lhe oferece o mate”.

Desenvolveu-se então um comércio regular de mate no Rio Grande do Sul. De Passo Fundo saíam os carregamentos de erva para a Vacaria; Soledade era o centro fornecedor de mate para a fronteira uruguaia; o mate das Missões propriamente ditas era consumido também na fronteira, mas as grandes cargas vinham até Rio Pardo, em carretas puxadas a quatro, cinco juntas de bois, e daí seguiam pelo Jacuí, até Porto Alegre; enquanto isso, os ervais do Camaquã (hoje devastados), iam suprindo a zona sul, sendo por muitos anos famosa a “erva grossa de Cangussu”, para mate-doce.

O consumo se foi difundindo cada vez mais, e em breve se tornava necessária a abertura de novas estradas, para que o comércio do mate pudesse beneficiar toda a província. E à sombra da erva-mate o Rio Grande foi sendo desbravado.

Entrementes, dava-se o fenômeno da desvalorização completa dos produtos da pecuária. O gado desceu a patacão por cabeça e os cavalos eram vendidos por algumas patacas. Grandes estancieiros, de léguas e léguas de campo, viram-se obrigados a recorrer a agricultura, enquanto as gadarias se criavam abandonadas pelos campos, tornando-se logo selvagens. Houve, por conseguinte, o problema dos desempregados, na zona das estâncias. E à peonada sem serviço apresentaram-se dois rumos a seguir: ou dedicar-se à agricultura, ou procurar os ervais da Serra. Entre a cruel inconstância das plantações, subordinadas que são às chuvas e geadas, e o benefício da erva-mate, para o qual bastava unicamente o ervateiro subir à árvore e fazer o desgalhamento, preferiram os campeiros esta última ocupação. Nessa época, portanto, a região serrana tomou grande desenvolvimento, não só pela busca aos ervais, como pelo aproveitamento dos novos braços trabalhadores na exploração de ágata e no cultivo da cana-de-açúcar.

Não só dos próprios rio-grandenses, mas também dos ervaleiros de outras regiões do Brasil, assim como de trabalhadores argentinos e paraguaios, receberam os ervais do Rio Grande esta invasão. Assim, não foi de estranhar que - ao ser libertado do cárcere - Bonpland, o grande enamorado da erva-mate, viesse também se embrenhar pela região missioneira. Primeiramente, estabeleceu-se o célebre botânico nuns ervais entre Cachoeira e Rio Pardo; mas logo se transladava para um rincão perdido nas cabeceiras do rio Piratini (afluente do Uruguai), onde por muitos anos viveu, entregue ao estudo da flora e fauna americana. Arséne Isabelle aí foi encontrá-lo, em 1831. “O ex-Intendente da Imperatriz Josefina, o viajante célebre, - conta-nos o renomado cronista francês - nos acolheu com bondade paternal e esforçou-se por contribuir, no que dependia dele, para o sucesso de nossas caçadas e colheitas zoológicas. Quando partimos de S. Borja, o sr. Bonpland preparava-se para se transportar à Província de Corrientes, de onde, em seguida, desceria para Buenos Aires” A Revolução Farroupilha, irrompida a 20 de Setembro de 1835, muito contribuiu neste movimento repovoador do território missioneiro. Pois, devido ao fato das operações bélicas se realizarem principalmente na zona sul e nas proximidades de Porto Alegre, muitas foram as famílias moradoras desta região que buscaram refúgio nas matas do rio Uruguai, de um modo especial nos “Ervais de Santo Cristo”, até então inexplorados.

Proclamada a República de Piratini, em 1836 - tornando-se a província do extremo sul independente do Brasil -, a maior parte da região missioneira ficou pertencendo ao Rio Grande do Sul, sob o governo do Cel. João Ribeiro de Almeida. enquanto o resto da República retardava o seu progresso, vítima das correrias guerreiras, a região dos ervais tomava um desenvolvimento impressionante.

O governo republicano, aliás, teve o máximo interesse em proteger a erva-mate, não só para que ela não faltasse nos lares rio-grandenses, mas principalmente tendo em vista a exportação cada vez mais crescente para o Prata. “A campanha promovida pelos farrapos em prol da cultura do trigo, da erva-mate e da batata foi uma campanha racional desde a propaganda pela imprensa, como os inúmeros artigos publicados no “O Povo”, até uma legislação protecionista, com uma série de decretos-leis sobre impostos e taxas de importação exportação. Assim, em 1838, o Presidente da República baixava um decreto estipulando o imposto de 10% sobre os gêneros e 20% sobre as bebidas em comércio com o Rio da Prata; entretanto, a erva-mate para lá exportada e os materiais bélicos de lá provenientes eram inteiramente isentos de gravação pelo fisco. Com esta medida, o comércio exportador de mate teve grande desenvolvimento; e já um ano depois - percebendo. as vantagens que este incremento podia trazer às combalidas tropas rebeldes - o governo republicano baixava um decreto estipulando a taxa de 160 réis por arroba de erva exportada. Bastou este ato para que as forças republicanas se vissem auxiliadas por cerca de dois contos de réis anuais, o que muito representava para o ideal revolucionário, sem que, no entanto, os produtores de mate se vissem prejudicados, tal a pequena quota contributiva.

Por intermédio dessa política financeira da República de Piratini podemos perceber o papel importante que o mate vinha desempenhando no Rio Grande do Sul. Mas são os símbolos adotados pelo novo Estado que nos vão dizer, de uma maneira mais convincente, a grande importância da erva-mate durante a década legendária dos farroupilhas.

O primeiro projeto da bandeira republicana - apresentado pelo padre Chagas, continha, ao centro de um pavilhão tricolor (verde, encarnado e amarelo), “um campo branco, tendo pintado um boi, um gaúcho na ação de laçar, e a árvore do mate ao lado. Este projeto foi, no entanto, rejeitado, quando a República Rio-Grandense adotou como símbolo oficial apenas o pavilhão tricolor. No brasão das armas decretado pelo novo Estado, porém, vemos novamente o mate, desta vez em ramos de erva contornando o barrete frígio Nos históricos lenços de seda com as armas da República, que Bernardo Pires mandou confeccionar nos Estados Unidos, também vislumbramos os ramos de erva circundando os dois barretes frígios colocados em cada lado o brazão e amarrando as lanças farroupilhas em cruzadas nos quatro cantos. E no painel alegórico pintado em honra às vitórias farroupilhas pelo padre Hildebrando de Freitas Pedroso, deputado à Assembléia Constituinte da República, figura mais urna vez a erva-mate, ao lado de outras produções típicas do Rio Grande.

Mas não só aos símbolos do Estado, como também aos distintivos individuais dos defensores da causa republicana, veio ter a influência do mate. Pois “em uma festa noticiado pelo “O Povo”, os homens traziam como distintivos ramos de erva-male atados com as cores nacionais, enquanto as mulheres ostentavam o Tope Nacional Rio-Grandense, estabelecido em 12 de novembro de 36”.

Outrossim, deve-se frisar que, na época farroupilha, era a erva um dos raros materiais empregados ainda nos pagamentos em espécie. E num dos editoriais de “O Povo” (12-10-39) lê-se na lista de contribuições para as forças republicanas, muitas arrobas de erva-mate, ao lado de onças, patacões e balastracas.

Terminada a Guerra dos Farrapos, parecia que sobre o território missioneiro havia passado um século naqueles dez anos de luta. Os sertões se achavam inteiramente desbravados e ao lado das ruínas jesuíticas se estendiam alegres povoados e extensas plantações. A exploração da erva-mate, entrementes, alcançara o máximo de esplendor E podia-se mesmo dizer que o ano, nas Missões, fora dividido em dois distintos períodos: os meses da lavoura e os meses dos ervais. Quando o hibernal minuano fustigava o Rio Grande, ia encontrar às matas do Uruguai e às cabeceiras do Jacuí milhares de homens enchendo os surrões de couro com a preciosa erva missioneira. Passavam as enxurrada, vinham os sóis primaveris, e a batalha da erva-mate não cessava. Somente à entrada do verão é que os ervateiros abandonavam as matas em busca das lavouras.

É nesse período da vida rural das Missões que tem lugar um dos mais curiosos costumes do Rio Grande: o puchirrão, herança do comunismo guarani. Escolhido o pedaço de campo para as plantações, vai o agricultor de rancho em rancho, em todo o vizindário, convidar os amigos a que o auxiliem no amanho da terra. E, no dia marcado, lá chega, ao rancho do ervateiro, uma multidão de camponeses - uns a cavalo, outros em carretas ou aranhas - trazendo ao ombro as enxadas e machados. Inicia-se então o arroteamento da terra, num torneio de produtividade - cada qual querendo se mostrar mais eficiente.

“Ao pôr-do-sol - descreve-nos Evaristo de Castro essa festa dos ervateiros - concluem com o puchirão e se dirigem ao paiol, onde os espera uma lauta ceia com bebidas alcoólicas, e um carramanchão ornado de muitas moças, para o fandango, acompanhado de canto em dueto de melodias melancólicas, usadas pelos sertanejos. Na sala de dança formam-se os pares, e esperam pelo verso cantado; concluindo este, começa o fandango, que é todo sapateado; concluída a primeira figura do fandango; para continuar outro verso cantado (sic), e assim alternando-se sempre o sapateado com o canto do quero-mana, da tirana, da meia-canha, etc..

“O fandango, que é uma dança antiga dos sertanejos de S. Paulo, de origem guarani, (sic) só se dança aqui por ocasião do puchirão entre os ervateiros.

“Na ceia do puchirão é costume vir o assado de carne de gado com couro, preparado pelo sistema dos gaúchos, sendo o pedaço mais estimado a cabeça de rês, quando é uma terneira, o qual é cozido pelo seguinte modo: cavam um buraco no chão, forram-no com folhas de árvores, colocam dentro do buraco a cabeça, que fica também coberta com folhas, cobrem com terra e em cima fazem um grande fogo, onde são feitos os assados com couro em grandes espetos; no dia seguinte, depois de ter esfriado a terra, tiram a cabeça do buraco, a qual sai perfeitamente cozida e saborosíssima, sendo esse um dos bocados mais apreciados.

“Durante o fandango, que sempre dura até o amanhecer, urna mulher oferece a todos, de um a um, aguardente fervida com açúcar, em um grande caneco, do qual é a bebida chupada por meio de uma bomba, e bem assim o mate chimarrão, em cuias com suas competentes bombas”.

Findo esse puchirão, outro ervateiro fará o chamado geral, para que os companheiros venham auxiliá-lo no arroteamento do solo. E assim prosseguem os caboclos rio-grandenses, servindo-se uns aos outros até que os trabalhos da agricultura se concluam, cedendo o lugar, novamente, à labuta nos ervais...

O constante progresso da região missioneira não cessa. Das vetustas ruínas jesuíticas despontam novas civilizações em meio a um hino de abundância. Já não mais erram indígenas, bandeirantes e lagunistas naquelas paragens. Aos gritos guerreiros de Sepé Tiarajú, ao baque surdo das árvores tombando ao avanço dos bandeirantes, e ao estrépito da cavalaria de Francisco Pinto Bandeira, sucedeu o ruído dos tratores que rasgam a virgindade do solo gaúcho.

E os homens de todos os povos se irmanam, buscando as riquezas da plagas sulinas.

Se, num primeiro contato com a nova “querência” esses homens, vindo às vezes de terras longínquas, se sentem oprimidos de angústia e tristeza - tristeza que lhes vem da recordação das pátrias distantes, angústia que e o temor do desconhecido e a incerteza da acolhida que vão ter - por certo esses sentimentos deprimentes se esfumam ante a hospitalidade crioula.

É nesse momento que o tradicional hábito de fidalguia dos riograndenses, integrando a alma regional na totalidade nacional, retraça toda a imensa receptividade da alma brasileira no gesto amigo, nobre e sem reservas do velho campesino a oferecer ao recém-vindo a cuia do chimarrão.

Chimarrão que, uma vez sorvido, no trago tímido do iniciado, transfunde no corpo as suas propriedades revigorantes, e presenteia a alma com uma mensagem fraternal, que consubstancia a certeza da descoberta de uma nova pátria e a antecipação de uma carta nova de cidadania...


Trecho extraído do livro "História do Chimarrão", de Barbosa Lessa.

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