A
ORIGEM DO MATE SEGUNDO OS ÍNDIOS GUARANIS
Os
cânticos de guerra reboaram na floresta, e Itabaetê
marchou com seus homens à procura do grande acampamento.
Toda a tribo partira, levando nos olhos o brilho da vitória.
Só um homem, enfraquecido pelo peso dos anos, não
pudera seguir nesta nova arrancada guerreira. E ficara chorando
no oito de uma coxilha, olhar estendido à linha de combatentes
que serpenteava pelos caminhos. Mesmo depois da tribo ter desaparecido
no véu da grande mata, ainda o velho índio permanecera
numa atitude de estátua, mudo, enovelado em mil recordações
das pelejas passadas. Voltava, em pensamento. àqueles tempos
em que seu braço era o mais temido da tribo, a sua flecha
a mais certeira, os seus olhos os mais seguros a perscrutar a imensidão
das noites, Agora, fraco, envelhecido, estava condenado a atirar-se
inativo ao fundo das matarias. Para seu consolo, restavam-lhe apenas
as recordações, e a beleza de Yarí, a mais
jovem e a mais formosa de suas filhas - a qual, surda ao convite
de muitos guerreiros enamorados, preferira permanecer junto ao velho
pai, adoçando-lhe as últimas horas de vida com o mel
de seus sorrisos. Um dia, chegou ao rancho do velho guarani
um viageiro estranho - roupagem colorida, olhos lembrando o azul
de céus longínquos. O guarani logo percebeu que o
homem vinha de terras distantes, muito além das matas do
Maracaju, matas que ele cortara, vibrando de entusiasmo, nas caminhadas
de outrora. A porta de couro de seu rancho abriu-se inteiramente,
recebendo o estrangeiro. Yarí foi buscar os frutos mais lindos
da floresta, e o mel mais doce das mirins. E o seu velho pai, cerrando
um pouco os olhos para melhor buscar as riquezas de um mundo afastado
no tempo, recordava episódios de sua mocidade, entusiasmava-se
no relato das caçadas perigosas e dos entreveros ruidosos.
Tudo foi feito para que as horas que o estrangeiro passasse naquele
rancho fossem cheias de contentamento. Desceu a noite sobre
a terra e a rede foi estendida para o sono do visitante. Seus sonhos
foram povoados pela voz suave da virgem, entoando as cantigas guaranis.
E no outro dia, quando o sol espiou por entre os ramos mais baixos
do arvoredo, foi encontrar o estrangeiro já pronto para seguir
viagem. - Em tuas mãos repousa a generosidade das
fontes cristalinas... - disse ele ao velho índio. - Em teu
coração se abriga a hospitalidade das planuras infindas
dos charruas, onde os campos se abrem em mil caminhos sem estender
nada que impeça o andar do viageiro; no corpo de tua filha
se esconde a pureza dos o1hos-dágua e a alegria das madrugadas
de minha terra. Tanta virtude merece ser recompensada. Venho dos
domínios de Tupá, o Deus do Bem. Pede o que quiseres!
- Nada mereço pelo que fiz, senhor! -, respondeu o guarani.
- Mas como a bondade imensa de Tupá quer pousar suas mãos
sabre este rancho pobre, eu pediria mais um pouco de alento para
os últimos passos do meu viajar. Outrora, eu guiava pelos
caminhos da guerra um sem-fim de guerreiros; hoje, somente minha
filha enche de vida as minhas horas derradeiras. Eu quisera um outro
companheiro, que atirasse doçura aos meus lábios e
descanso ao meu coração. Alguém que fosse meu
último amigo, um amigo fiel. Assim, Yarí poderia seguir
o rastro da nossa tribo, onde os jovens anseiam por seu amor para
continuarem mais confiantes no caminho da vitória. É
o que peço, senhor: um amigo fiel, um companheiro que encha
de doçura a horas amargas da saudade... O emissário
de Tupá sorriu. Em suas mãos brilhava - recoberta
de uma luz estranha - uma planta repleta de folhagens verdes, donde
se desprendia um perfume de bondade, talvez o mesmo perfume de Tupá.
- Deixa crescer esta planta, e bebe de suas folhas! - disse
o enviado de Deus. - Bebe de suas folhas, e terás o companheiro
que pedes! Esta erva, que traz em si a graça do Tupá,
se estenderá pelas matas, trazendo o conforto não
só a ti mas a todos os homens de tua tribo. E tu, Yarí,
serás a protetora das florestas que haverão de surgir.
Os guerreiros provarão a mesma delícia de teu carinho
ao sorver esta bebida; as caminhadas de guerra serão menos
fatigantes, e os dias de descanso mais felizes... E já
se afastando do rancho, o enviado de Tupá repetiu:
- Terás um companheiro fiel, velho chefe guarani... E será
a protetora de tua raça, Caá-Yarí...
E desde então Caá-Yarí é a senhora dos
ervais e a deusa dos ervateiros. Todos merecem dela o máximo
de auxilia, se lhe são fiéis. E se algum ervateiro,
ainda não satisfeito com aquela proteção, quiser
ver a fartura escorrendo de seus dedos, poderá fazer com
ela um pacto sagrado. Bastará entrar numa igreja, durante
a Semana Santa, e pedir Caá-Yarí em casamento, jurando
viver para sempre nos ervais, voltado somente para o culto de sua
deusa, sem nunca mais amar outra mulher... Deixará, depois,
num ramo de erva-mate, um bilhete no qual marca um encontro com
a bela protetora das florestas No dia marcado, deverá penetrar
no fundo da mataria, onde Caá-Yarí lhe provará
a bravura, interrompendo-lhe o caminho com serpentes e feras. E
se o ervateiro for corajoso e forte, vencendo a todos os perigos,
receberá a recompensa de Yarí. Sua vida será
toda tomada pelo amor da jovem deusa. Suas noites serão cheias
de prazer, e seus dias cheios de fartura. Os ervais se despirão
por encanto, enchendo os surrões de couro sem que ele tenha
gasto o mínimo de esforço. Na hora da pesagem, Caá-Yarí
- que é invisível para todos menos para o seu amante
- pousará sobre os feixes de erva, aumentando o peso da colheita.
A felicidade será eterna para o ervateiro! Eterna...
se ele não quebrar seu juramento... Pois se alguma mulher
consegue desnorteá-lo, haverá de lhe entregar, junto
às carícias, a sentença da desgraça.
Um dia, o ervateiro será encontrado estirado no meio dos
ervais, inexplicavelmente morto, ou então correndo pelas
florestas, ensangüentado, delirando, louco! É
a vingança de CaáYarí! Ela jamais perdoa! Trecho extraído do livro "História
do Chimarrão", de Barbosa Lessa.
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